Imaginemos que João e Rosa sejam um casal. Num belo dia, Rosa decide agredir João com um soco, por estar enciumada após ver algo nas redes sociais dele. Nesse mesmo dia, João, horas depois, decide desferir contra ela um soco de igual intensidade àquele desferido por Rosa contra ele anteriormente. As duas agressões produziram lesões corporais leves. Nenhum dos dois agiu em legítima defesa.
Dito isso, é de se imaginar que as consequências jurídicas para ambos sejam as mesmas, correto? Na realidade, não é assim que funciona no Brasil, pois aqui há algumas enormes diferenças para essas condutas.
CAPITULAÇÃO DO CRIME
A primeira diferença é que João praticou o crime de lesão corporal em contexto de violência doméstica contra a mulher, crime esse previsto no art. 129, § 13, do Código Penal, com uma pena de reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Rosa, por outro lado, praticou o crime de lesão corporal em contexto de violência doméstica, previsto no art. 129 § 9º, do Código Penal, com pena de detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
De acordo com o Código Penal, a pena de reclusão é mais grave do que a de detenção, pois aquela (reclusão) admite regime inicial fechado, enquanto essa (detenção) não admite regime inicial fechado, admitindo somente regimes iniciais semiaberto ou aberto.
PROTEÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA, PRISÃO PREVENTIVA E MEDIDAS PROTETIVAS
Mas não é só. Rosa terá toda a proteção da Lei nº 11.340/2006, denominada “Lei Maria da Penha”, podendo solicitar as medidas protetivas específicas de proteção à mulher, dentre elas o imediato afastamento do agressor do lar (ainda que a casa seja de João) e até mesmo o pagamento de pensão alimentícia provisória (art. 22, incisos II e V, respectivamente). Ainda, as medidas podem ser decretadas pelo Poder Judiciário até mesmo contra a vontade da vítima (art. 19) e de imediato, independentemente da oitiva do Ministério Público (art. 19, § 1º), podendo ser decretadas inclusive sem a oitiva prévia e/ou contraditório por parte de João. É possível também decretar a prisão preventiva de João, independentemente da vontade de Rosa, até mesmo de ofício pelo Juiz, ou seja, independentemente de pedido do Ministério Público ou do Delegado de Polícia (art. 20).
João, por outro lado, não poderá pleitear medidas protetivas com base na Lei Maria da Penha, podendo, no máximo, pleitear as medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal. A prisão preventiva é uma medida cautelar, mas, no caso, como o crime praticado por Rosa, apesar de ser doloso, tem pena máxima não superior a 4 (quatro) anos, então a sua prisão preventiva não poderá ser decretada, em obediência ao art. 313, I, do Código de Processo Penal.
Caberá a João pleitear somente, então, as medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, dentre elas o comparecimento mensal em Juízo por parte de Rosa para assinar uma “folha de ponto” (CPP, art. 319, I). Ocorre que, para tanto, João necessitará comparecer pessoalmente à Delegacia de Polícia Civil ou Ministério Público e convencer um Delegado de Polícia ou Promotor de Justiça a representar ou pedir, em seu favor, as tais medidas cautelares. Do contrário, João terá que gastar dinheiro para contratar advogado com seus próprios recursos ou, com sorte, conseguir atendimento na Defensoria Pública para atuar em seu favor, instituição essa que já vive assoberbada de trabalho.
Mas as diferenças não param por aí.
NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA
Para que o crime praticado por Rosa seja investigado, é necessário que João represente criminalmente contra ela, comparecendo a uma Delegacia de Polícia Civil no prazo de até 6 (seis) meses a contar da ciência dele sobre a autoria do fato. É que, de acordo com o art. 88 da Lei nº 9.099/1995, intitulada Lei dos Juizados Especiais, o crime de lesão corporal leve depende de representação por parte da vítima. Nesse contexto, por mais que a lesão corporal sofrida por João não seja propriamente leve, pois essa é prevista no art. 129, caput, do Código Penal, sendo na realidade uma lesão específica em razão do contexto de violência doméstica, prevista no art. 129, § 9º, do Código Penal, a jurisprudência brasileira vem entendendo que, mesmo nesses casos, em se tratando de violência doméstica contra o homem, o crime só é processado mediante representação da vítima:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. LESÕES CORPORAIS RECÍPROCAS EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. JUSTA CAUSA EVIDENCIADA. VÍTIMA MULHER. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VÍTIMA HOMEM. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. PROVIMENTO PARCIAL. 1. Ajusta causa para a deflagração da ação penal, entendida como lastro probatório mínimo a embasar a pretensão acusatória, satisfaz-se com a demonstração da materialidade do crime e indícios de autoria, não comportando essa fase processual um juízo aprofundado e crítico sobre o acervo probatório já existente, providência a ser adotada em sentença. 2. O crime de lesões corporais leves praticado contra vítima do sexo masculino é de ação penal pública condicionada à representação (art. 88 da Lei n 9.099/95), ao passo que o delito de lesões corporais leves cometido contra vítima do sexo feminino em contexto de violência doméstica é de ação penal pública incondicionada (art. 41, da Lei 11.340/06). 3. Não havendo, no prazo decadencial de seis meses, representação da vítima do sexo masculino, o Ministério Público não tem legitimidade para oferecer denúncia contra a mulher. 4. Recurso parcialmente provido. (TJ-DF 20160110031039 0001007-51.2016.8.07.0016, Relator: JESUINO RISSATO, Data de Julgamento: 24/11/2016, 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/12/2016 . Pág.: 153/161)
Assim sendo, se João não representar no prazo legal de 6 (seis) meses a contar da ciência da autoria do fato, o inquérito policial contra Rosa não poderá sequer ser instaurado, pois assim prevê o § 4º do art. 5º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, o crime praticado por João contra Rosa será processado independentemente da vontade de Rosa, ou seja, ainda que o casal tenha se reconciliado, isso de nada importará, pois o caso seguirá para a Justiça Criminal, afinal, o crime de lesão corporal praticado contra a mulher em contexto de violência doméstica é o que chamamos de crime de ação penal pública incondicionada à representação. Desse modo, mesmo que o casal tenha se reconciliado e combinado de “arquivar o caso”, o procedimento que apura o crime de João seguirá até o fim, enquanto o procedimento que apura o crime de Rosa poderá ser prontamente arquivado, bastando que João não represente ou, se tiver representado, se retrate de sua representação até antes do momento do oferecimento da denúncia, conforme o art. 102 do Código Penal.
SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
Digamos, então, que João não queira arquivar o caso, insistindo que Rosa seja punida pela lesão que praticou contra ele. Como vimos, o processo em que Rosa é vítima seguirá independentemente de qualquer questão, mas como fica então o procedimento em que João é vítima?
Nesse contexto, se Rosa for primária e não estiver sendo processada por outro crime, considerando que a pena mínima do delito praticado por ela não é superior a 1 (um) ano, então a ela será oferecido o benefício da suspensão condicional do processo, previsto no art. 89 da Lei nº 9.099/1995. Na prática, Rosa cumpre uma condição simples, como pagamento de um ou dois salários-mínimos ou prestação de serviços à comunidade, e, após isso, sua punibilidade é extinta. Rosa não chegará sequer a ser condenada, tecnicamente dizendo, mantendo a sua primariedade se cumprir as condições do benefício acima.
CONDENAÇÃO E SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA
Se, quanto ao benefício anteriormente visto (suspensão condicional do processo), Rosa não fizer jus ao ele, descumpri-lo ou recusá-lo, então o processo segue. Se houver prova suficiente de que Rosa praticou mesmo o crime, ela será condenada, muito provavelmente a um regime inicial aberto, e, ainda assim, não sendo ela reincidente em crime doloso, fará jus a outro benefício, no qual ela sequer cumprirá o regime aberto (que é uma privação de liberdade, ainda que parcial). Esse benefício é o da suspensão condicional da pena, previsto no art. 77 do Código Penal, que admite, por exemplo, que Rosa preste serviços à comunidade ou até mesmo que somente seja proibida de ausentar-se da Comarca sem autorização judicial, de frequentar determinados lugares e seja obrigada a comparecer ao Fórum uma vez por mês para assinar, conforme o art. 78 do Código Penal.
Por outro lado, em relação ao processo que apura o crime praticado por João, ele, mesmo que seja primário e tenha sua ficha criminal imaculada, não fará jus ao benefício da suspensão condicional do processo, pois tal benefício, previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais, não se aplica aos crimes cometidos em violência doméstica contra a mulher, conforme prevê o art. 41 da Lei Maria da Penha.
O processo contra João seguirá, então, e, conforme a jurisprudência brasileira vem admitindo, bastará a palavra da suposta vítima contra ele para que ele seja condenado. Sendo condenado, de acordo com a lei, até caberia em seu favor a suspensão condicional da pena prevista no art. 77 do Código Penal, mas dificilmente ele conseguiria condições tão brandas como aquelas que seriam obtidas por Rosa. Mas não é só. Há entendimentos jurisprudenciais no Brasil no sentido de que, a depender do caso, o homem não faria jus sequer à suspensão condicional da pena, pois isso violaria os princípios básicos da Lei Maria da Penha. No ponto, vejamos a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS):
EMBARGOS INFRINGENTES. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA. INADEQUAÇÃO DE SUA APLICAÇÃO NA MODALIDADE ESPECIAL. Mantida a decisão firmada pela maioria, no sentido de conceder o sursis simples ao condenado. Tratando-se de crime de lesão corporal praticado no âmbito da violência doméstica, quando o acusado agrediu sua companheira na presença dos filhos do casal, não se mostra adequada a concessão da suspensão condicional da pena especial, sob pena de contrariar princípios básicos da Lei nº 11.340/06, que visa a proteção das mulheres do contexto de abuso. Necessária, portanto, a aplicação de medida mais severa, visando a reflexão do condenado, justamente com o fim de auxiliar na sua ressocialização.EMBARGOS DESACOLHIDOS, POR MAIORIA. (TJ-RS – EI: 70082931296 RS, Relator: Joni Victoria Simões, Data de Julgamento: 01/11/2019, Primeiro Grupo de Câmaras Criminais, Data de Publicação: 11/11/2019).
CONCLUSÃO
O objetivo da presente postagem foi apenas conscientizar a população sobre as diferenças de tratamento entre a violência doméstica praticada pelo homem contra a mulher e aquela praticada pela mulher contra o homem, ainda que se trate de um mesmo tipo de violência, a saber, lesão corporal de mesma intensidade. Não foi nosso objetivo emitir juízo de valor sobre a legislação existente.
E você, o que pensa sobre essa questão? Comente!
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