Introdução
O “direito de não produzir provas contra si mesmo” é amplamente mencionado nas faculdades de Direito e até mesmo nas conversas informais entre cidadãos comuns. Ocorre que há alguns equívocos quanto a essa matéria, que pretendemos esclarecer nesta postagem. Vale salientar, de início, que não existe um direito abstrato e absoluto de não produzir provas contra si mesmo. É que, embora o sujeito não possa ser forçado fisicamente a produzir as provas contra si, muitas vezes sua recusa pode ensejar consequências gravíssimas para si.
A não autoincriminação
A garantia da não autoincriminação, também conhecida como nemo tenetur se detegere, por sua vez, está prevista no inciso LXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, com a seguinte redação:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Como se percebe, numa leitura puramente gramatical da Constituição Federal, seria possível concluir que o texto constitucional previu a garantia da não autoincriminação apenas na extensão de o preso ter o direito de permanecer em silêncio durante o ato de sua prisão e enquanto ela perdurar.
Uma indagação que poderia surgir, então, é se a pessoa que responde um processo criminal em liberdade teria ou não o direito ao silêncio. O texto infraconstitucional avança e amplia o direito ao silêncio para além da pessoa presa, conforme parágrafo único do art. 186 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Como se observa, o réu, estando preso ou solto, tem o direito ao silêncio e isso não pode ser tido como confissão ou interpretado em prejuízo de sua defesa. Entretanto, apesar disso, o ordenamento jurídico brasileiro vem estabelecendo exceções ao princípio da não autoincriminação. Listamos aqui algumas dessas exceções.
1. Exame de identificação de perfil genético na execução penal
O art. 9º-A da Lei de Execuções Penais (LEP), incluído pela Lei nº 13.964/2019, denominada “Pacote Anticrime”, estabeleceu o exame de identificação de perfil genético, mediante extração de DNA, à pessoa que iniciar ou estiver cumprindo pena por alguns tipos de crimes:
Art. 9º-A. O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional.
Tal identificação, por expressa disposição legal, não pode ser utilizada para as práticas de fenotipagem genética ou de busca familiar:
Art. 9º-A. § 5º A amostra biológica coletada só poderá ser utilizada para o único e exclusivo fim de permitir a identificação pelo perfil genético, não estando autorizadas as práticas de fenotipagem genética ou de busca familiar.
Entretanto, a identificação genética, também por expressa disposição legal, pode e deve ser utilizada para apurar se o indivíduo está envolvido com práticas delitivas em outros casos, mediante requisição da autoridade policial ao juiz competente:
Art. 9º-A. § 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.
A pergunta que surge, então, é a seguinte: e se o indivíduo recusar-se a fornecer o seu material genético, isso poderá gerar contra ele alguma consequência? A resposta é positiva. A própria lei estabelece que, em tal caso, o indivíduo pratica falta grave:
Art. 9º-A. § 8º Constitui falta grave a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético.
A prática de falta grave poderá ensejar contra o sujeito diversas consequências extremamente prejudiciais, a saber: regressão de regime; perda de dias remidos; interrupção do prazo para progressão de regime; perda de direitos; inclusão no regime disciplinar diferenciado; impedimento de indulto ou comutação; conversão de pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade.
A partir disso, indaga-se se tal previsão legal afrontaria a garantia da não autoincriminação em sua extensão prevista na Constituição Federal. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já entendeu que o dispositivo em comento não viola a Constituição:
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. FORNECIMENTO DE PERFIL GENÉTICO. ART. 9º-A DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL (INSERIDO PELA LEI N. 12.654/2012 COM REDAÇÃO DADA PELA LEI N. 13.964/2019). VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA LEGALIDADE, PRIVACIDADE E CULPABILIDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO À AUTOINCRIMINAÇÃO COMPULSÓRIA (NEMO TENETUR SE DETEGERE). NÃO OCORRÊNCIA. TEMA 905 DO STF AINDA NÃO JULGADO. 1. As supostas violações dos direitos fundamentais da legalidade, da privacidade, da presunção de culpabilidade, incisos II, X e LVII, do art. 5º da Constituição Federal não foram objeto de deliberação no ato apontado como coator, constituindo supressão de instância seu conhecimento direito neste Tribunal Superior. Precedentes. 2. Ninguém será obrigado a produzir elementos de prova contra si mesmo. Decorrente do direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXVIII, o referido direito também tem sede convencional, especialmente no art. 8º, 2, g, da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1969.3. Se a conduta determinada pela Lei impele alguém a, em razão de investigação, produzir elemento contrário ao seu interesse pela liberdade, há violação da vedação à autoincriminação compulsória; mas, ausente investigação sobre suposto crime, não há falar em violação do princípio da autoincriminação.4. Não havendo fato definido como crime em apuração, o fornecimento do perfil genético não configura exigência de produção de prova contra o apenado. Tal exigência recrudesce o caráter de prevenção especial negativo da pena.5. A determinação do art. 9º-A da Lei de Execução Penal não constitui violação do princípio da vedação à autoincriminação compulsória (nemo tenetur se detegere). Trata-se de procedimento de individualização e identificação possível graças ao avanço da técnica e que pode ser utilizado como elemento de prova para elucidação de crimes futuros.6. Não vislumbro flagrante ilegalidade na determinação de fornecimento do perfil genético do paciente, condenado por delito descrito no art. 217-A do Código Penal, nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal, constituindo falta grave a recusa, nos termos dos arts. 9-A, § 8º, e 50, VIII, do referido marco legal.Precedentes.7. Writ parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegada a ordem.
(STJ – HC: 879757 GO 2023/0462678-3, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 20/08/2024, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/08/2024) – grifou-se.
Contudo, chamamos a atenção para uma peculiaridade da decisão acima: o STJ entendeu que a exigência do exame de perfil genético não viola a garantia da não autoincriminação se não houver investigação de fato definido como crime contra o sujeito. Em termos mais simples, pela decisão acima, se o sujeito não estiver em investigação quanto a outro crime, ele não pode recusar fornecer o material para o exame de perfil genético.
Entretanto, a decisão acima deixou em aberto a possibilidade (ou não) de recusa fundamentada no receio de ser incriminado em investigação em andamento. Por outro lado, analisando-se outras decisões do STJ, observa-se que a tendência da Corte é entender pela constitucionalidade do exame de perfil genético (e consequentemente pela constitucionalidade do reconhecimento de falta grave na hipótese de eventual recusa) mesmo em caso de o indivíduo estar sendo investigado por crimes:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. COLETA DE MATERIAL GENÉTICO. CRIME DE ESTUPRO. PREVISÃO DO ART. 9º-A DA LEP. INDEFERIMENTO. SUFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. ENTENDIMENTO DO STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. É inadmissível habeas corpus em substituição ao recurso próprio, também à revisão criminal, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo se verificada flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado apta a ensejar a concessão da ordem de ofício. 2. O art. 9º-A, da Lei de Execução Penal prevê que os condenados por crimes praticados, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração do DNA. 3. Mantém-se integralmente a decisão agravada cujos fundamentos estão em conformidade com o entendimento do STJ sobre a matéria suscitada. 4. Agravo regimental desprovido.
(STJ – AgRg no HC: 675408 MG 2021/0193542-4, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 22/02/2022, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/02/2022)
Sobre a decisão acima ementada, vale a leitura do seu inteiro teor.
2. Recusa aos testes do bafômetro e outros
O art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), incluído pela Lei nº 13.281/2016, estabelece como infração de trânsito a recusa a submeter-se ao teste do etilômetro, também conhecido como “bafômetro”, bem como a qualquer teste, exame clínico (sanguíneo, por exemplo), perícia ou outro procedimento que permita identificar no condutor do veículo a influência de álcool ou outra substância psicoativa:
Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.
Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses
O STJ vem entendendo que é compatível com a Constituição a aplicação de sanções em caso de recusa a submeter-se aos ditos testes, entendendo também que isso não viola a garantia da não autoincriminação. No ponto, vale citar a íntegra de extensa, mas elucidativa ementa de julgado da Corte Cidadã:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TAXISTA. TESTE DE ALCOOLEMIA, ETILÔMETRO OU BAFÔMETRO. RECUSA EM SE SUBMETER AO EXAME. SANÇÃO ADMINISTRATIVA. ART. 277, § 3º C/C ART. 165 DO CTB. AUTONOMIA DAS INFRAÇÕES. IDENTIDADE DE PENAS. DESNECESSIDADE DE PROVA DA EMBRIAGUEZ. INFRAÇÃO DE MERA CONDUTA. DEVER INSTRUMENTAL DE FAZER. PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. INAPLICABILIDADE. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS PENAL E ADMINISTRATIVA. TIPO ADMINISTRATIVO QUE NÃO CONSTITUI CRIME. SEGURANÇA VIÁRIA. DIREITO FUNDAMENTAL. DEVER DO ESTADO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA RESPEITADA. SÚMULA 301/STJ. PREVISÃO DE EFEITOS LEGAIS CONTRÁRIOS A QUEM SE RECUSA A SE SUBMETER A PROVA TÉCNICA. TEMA NÃO EXCLUSIVO DO CTB E SUMULADO PELO STJ. INFRAÇÃO COMETIDA NO EXERCÍCIO DA PROFISSÃO DE TRANSPORTE REMUNERADO DE PASSAGEIROS. ATIVIDADE DEPENDENTE DE AUTORIZAÇÃO ESTATAL. SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA REGIDO PELA LEI 12.587/2012. OBRIGAÇÃO DE CUMPRIR A LEGISLAÇÃO DE TRÂNSITO REFORÇADA. 1. A controvérsia sub examine versa sobre a consequência administrativa da recusa do condutor de veículo automotor a se submeter a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa. 2. O Tribunal recorrido entendeu que a simples negativa de realização do teste de alcoolemia, etilômetro ou bafômetro, sem outros meios de prova da embriaguez do motorista, não é suficiente para configurar a automática infração de trânsito. 3. A recorrente sustenta que esse entendimento do Tribunal local viola os arts. 277, § 3º e 165 da Lei 9.503/1997, pois a legislação prevê a aplicação das penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro ( CTB) independentemente da comprovação da embriaguez, bastando o condutor se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do art. 277. 4. O art. 165 do CTB prevê sanções e medidas administrativas para quem dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. 5. Já o art. 277, § 3º, na redação dada pela Lei 11.705/2008, determina a aplicação das mesmas penalidades e restrições administrativas do art. 165 ao condutor que se recusar a se submeter a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. 6. Interpretação sistemática dos referidos dispositivos permite concluir que o CTB instituiu duas infrações autônomas, embora com mesmo apenamento: (i) dirigir embriagado; (ii) recusar-se o condutor a se submeter a procedimentos que permitam aos agentes de trânsito apurar seu estado. 7. A recusa em se submeter ao teste do bafômetro não presume a embriaguez do art. 165 do CTB, tampouco se confunde com a infração ali estabelecida. Apenas enseja a aplicação de idêntica penalidade pelo descumprimento do dever positivo previsto no art. 277, caput. 8. O indivíduo racional pauta sua conduta pelos incentivos ou desincentivos decorrentes do seu comportamento. Se a política legislativa de segurança no trânsito é no sentido de prevenir os riscos da embriaguez ao volante mediante fiscalização que permita identificar condutores que estejam dirigindo sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa, deve a lei prever consequências que persuadam o indivíduo ao comportamento desejado pela norma. 9. Caso o CTB não punisse o condutor que descumpre a obrigação de fazer prevista na legislação na mesma proporção do desrespeito ao tipo legal que a fiscalização viária tem o dever de reprimir, o indivíduo desviante sempre optaria pela consequência menos gravosa. O dever estabelecido no caput do art. 277 constituiria mera faculdade estabelecida em favor do motorista, em detrimento da real finalidade dos procedimentos técnicos e científicos colocados à disposição dos agentes de trânsito na prevenção de acidentes. 10. A identidade de penas, mercê da diversidade de tipos infracionais, nada mais é do que resultado lógico da previsão legislativa de mecanismo para assegurar efetividade à determinação de regras de conduta compatíveis com a política pública estabelecida pela norma. 11. Ao contrário do sustentado pelo acórdão recorrido, a sanção do art. 277, § 3º, do CTB dispensa demonstração da embriaguez por outros meios de prova. A infração aqui reprimida não é a de embriaguez ao volante, prevista no art. 165, mas a de recusa em se submeter aos procedimentos do caput do art. 277, de natureza instrumental e formal, consumada com o mero comportamento contrário ao comando legal. 12. A prova da infração do art. 277, § 3º é a de descumprimento do dever de agir. Tão só. Sem necessidade de termo testemunhal ou outro meio idôneo admitido no § 2º do mesmo dispositivo legal. 13. O princípio nemo teneteur se detegere tem origem na garantia constitucional contra a autoincriminação e no direito do acusado de permanecer calado, sem ser coagido a produzir provas contra si mesmo. Aplica-se de forma irrestrita aos processos penais, sendo essa a sua esfera nuclear de proteção. 14. É possível admitir a incidência ampliada do princípio nemo teneteur se detegere quando determinada infração administrativa também constituir ilícito penal. Nesses casos, a unicidade de tratamento confere coerência interna ao sistema jurídico. 15. Nas situações em que a independência das instâncias é absoluta e os tipos infracionais distintos, a garantia do nemo teneteur se detegere não tem aplicação sobre a função administrativa exercida no âmbito da sua competência ordenadora, por falta de amparo no ordenamento pátrio. 16. Entender o contrário levaria ao absurdo de se admitir que o condutor pudesse recusar-se, sem as penalidades cabíveis, a submeter seu veículo a inspeção veicular ou a apresentar às autoridades de trânsito e seus agentes os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei, para averiguação da regularidade documental prescrita pela legislação. 17. A interpretação de uma norma há de ser feita para garantir a sua máxima eficácia e plena vigência, por militar em favor das leis a presunção de sua legitimidade e constitucionalidade enquanto não afastada do mundo jurídico pelo órgão judiciário competente. Negar efeito ao § 3º do art. 277 do CTB, antes do pronunciamento do STF na ADI 4.103-7/DF, usurpa competência do órgão constitucionalmente imbuído dessa função. 18. Não se pode olvidar, numa espécie de “cegueira deliberada”, que o direito responde às imposições da experiência (BINENBOJM, 2016, pg. 53). 19. Segundo dados da Organização Mundial de Comércio, o Brasil registra cerca de 47 mil mortes no trânsito por ano e 400 mil pessoas com algum tipo de sequela. Morre-se mais em acidentes de trânsito do que na guerra civil da Síria. 20. O custo para o País é de 56 bilhões por ano, conforme levantamento do Observatório Nacional de Segurança Viária, o que daria para construir 28 mil escolas ou 1.800 hospitais (http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888812-transi to-no-brasil-mata-47-mil-por-anoedeixa-400-mil-com-alguma-sequela. shtml). condutor). 21. O cálculo do Centro de Pesquisas e Economia do Seguro (Cpes) é ainda mais alarmante, alcançando R$ 146 bilhões de perda pelo Brasil, só em 2016, em decorrência de acidentes de trânsito, número equivalente a 2,3% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) nacional (http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888678-aciden tes-de-trânsito-custaram-23-do-pib-do-brasil-em-2016-diz-pesquisa.sh tml). Esse valor corresponde ao que seria gerado pelo trabalho das vítimas que morreram ou ficaram inválidas após os acidentes. 22. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a ingestão de álcool é a terceira maior causa de mortes por acidente de trânsito em 2016, perdendo apenas para a falta de atenção e excesso de velocidade (https://www.metrojornal.com.br/foco/2017/05/01/brasileo-quinto-pa is-mundo-em-mortes-no-trânsito-segundo-oms.html). E os jovens de 20 a 24 anos são a faixa etária mais atingida. 23. Tudo isso serve para demonstrar que a segurança viária, da mesma forma que a dignidade da pessoa humana, deve ser levada a sério e encarada como direito fundamental coletivo, e o dever do Estado em prestá-la não permite retrocesso. 24. A Lei 11.705/2008 alterou dispositivos do CTB na tentativa de dar resposta aos elevados desafios de proteger a população dos riscos reais e crescentes à sua incolumidade física em razão do desrespeito à legislação de trânsito. 25. O princípio nemo tenetur se detegere merece prestígio no sistema de referência próprio, servindo para neutralizar os arbítrios contra a dignidade da pessoa humana eventualmente perpetrados pela atividade estatal de persecução penal. Protege os acusados ou suspeitos de possíveis violências físicas e morais empregadas pelo agente estatal na coação em cooperar com a investigação criminal. 26. Daí a aplicá-lo, de forma geral e irrestrita, a todas as hipóteses de sanção estatal destituídas do mesmo sistema de referência vai uma larga distância. 27. Não há incompatibilidade entre o princípio nemo tenetur se detegere e o § 3º do art. 277 do CTB, pois este se dirige a deveres instrumentais de natureza estritamente administrativa, sem conteúdo criminal, em que as sanções estabelecidas têm caráter meramente persuasório da observância da legislação de trânsito. 28. A dignidade da pessoa humana em nada se mostra afrontada pela obrigação de fazer prevista no caput do art. 277 do CTB, com a consequente penalidade estabelecida no § 3º do mesmo dispositivo legal. 29. Primeiro, porque inexiste coação física ou moral para que o condutor do veículo se submeta ao teste de alcoolemia, etilômetro ou bafômetro. Só consequência patrimonial e administrativa pelo descumprimento de dever positivo instituído pela legislação em favor da fiscalização viária. Pode o condutor livremente optar por não realizar o teste, assumindo os ônus legais correspondentes. 30. Segundo, porque a sanção administrativa pela recusa em proceder na forma do art. 277, caput, não presume culpa de embriaguez, nem implica autoincriminação. Tampouco serve de indício da prática do crime do art. 306 do CTB. Restringe-se aos efeitos nela previstos, sem repercussão na esfera penal ou na liberdade pessoal do indivíduo. 31. A exigência legal de submissão a exame técnico ou científico, com os consectários jurídicos da recusa, não é exclusividade do CTB. Consta, v.g., dos art. 231 e 232 do Código Civil. 32. O STJ editou a Súmula 301 com o seguinte teor: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.” 33. A previsão de efeitos legais contrários a quem se recusa a se submeter a prova técnica não é tema heterodoxo na legislação ou repelido pelo Superior Tribunal de Justiça, desde que não envolvida matéria criminal. 34. No caso concreto, merece relevo o fato de o condutor do veículo ser profissional do trânsito, na condição de taxista autônomo, tendo a infração sido praticada no pleno exercício da atividade de transporte remunerado de passageiro. 35. Se da pessoa comum, usuária livre das vias públicas e corresponsável pela segurança na condução de veículo automotor, exige-se a observância da legislação de trânsito, com mais razão e maior rigor deve-se reclamar comportamento irrepreensível por aquele que presta serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, dependente de autorização estatal, e considerado pela Lei 12.587/2012 como serviço de utilidade pública (art. 12). 36. A qualidade de taxista do condutor, ao revés de amenizar a situação e atrair condescendência, agrava sua responsabilidade. Impõe atuação ainda mais rigorosa da fiscalização de trânsito, diante do risco multiplicado de grave dano de difícil ou impossível reparação à coletividade. 37. Recurso Especial provido.
(STJ – REsp: 1677380 RS 2017/0136731-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 10/10/2017, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/10/2017)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TESTE DE ALCOOLEMIA, ETILÔMETRO OU BAFÔMETRO. RECUSA EM SE SUBMETER AO EXAME. SANÇÃO ADMINISTRATIVA. ART. 277, § 3º, C/C ART. 165 DO CTB. AUTONOMIA DAS INFRAÇÕES. IDENTIDADE DE PENAS. DESNECESSIDADE DE PROVA DA EMBRIAGUEZ. INFRAÇÃO DE MERA CONDUTA. DEVER INSTRUMENTAL DE FAZER. PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. INAPLICABILIDADE. OBRIGAÇÃO DE CUMPRIR A LEGISLAÇÃO DE TRÂNSITO REFORÇADA. 1. Em recente julgamento do REsp 1.677.380/RS, relator Ministro Herman Benjamin, ocorrido em 10.10.2017 e publicado no DJe 16.10.2017, a Segunda Turma do STJ firmou entendimento de que, tendo em vista a necessidade de punição do descumprimento do dever positivo previsto no art. 277 do CTB, como infração de mera conduta, a recusa em se submeter ao teste de alcoolemia resulta na aplicação da mesma penalidade prevista para a sanção administrativa do art. 165 do CTB. 2. Agravo Interno não provido.
(STJ – AgInt no REsp: 1719584 RJ 2018/0013710-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 08/11/2018, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/11/2018)
3. Recusa a entregar documentos à autoridade de trânsito ou a seus agentes
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) também prevê ser infração a recusa a entregar documentos, mediante recibo, à autoridade de trânsito ou a seus agentes:
Art. 238. Recusar-se a entregar à autoridade de trânsito ou a seus agentes, mediante recibo, os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei, para averiguação de sua autenticidade:
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa e apreensão do veículo;
Medida administrativa – remoção do veículo.
Imaginemos que um sujeito tenha falsificado sua carteira nacional de habilitação (CNH) e esteja portando-a. Ao passar por uma blitz, com receio de a polícia identificar a falsidade e prendê-lo, o sujeito recusa-se a entregar sua CNH, alegando estar agindo amparado pela garantia da não autoincriminação. Se o sujeito recusar-se a entregar a CNH nesse contexto, comete crime de desobediência?
De acordo com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), não comete:
CRIMINAL. CONDENAÇÃO POR VIOLAÇÃO AO ART. 330 DO CÓDIGO PENAL. ACUSADO QUE SUPOSTAMENTE TERIA SE NEGADO A FORNECER OS DOCUMENTOS DO VEÍCULO E DA HABILITAÇÃO. INFRAÇÃO AO ART. 238 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM CONFIGURADO. LIÇÃO DE KEITY SABOYA. JULGADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO PROVIDO PARA O FIM DE ABSOLVER O ACUSADO, NOS TERMOS DO ART. 386, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. STF, HC 88.452, rel. Min. Eros Grau: “HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE. MOTORISTA QUE SE RECUSA A ENTREGAR DOCUMENTOS À AUTORIDADE DE TRÂNSITO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que não há crime de desobediência quando a inexecução da ordem emanada de servidor público estiver sujeita à punição administrativa, sem ressalva de sanção penal. Hipótese em que o paciente, abordado por agente de trânsito, se recusou a exibir documentos pessoais e do veículo, conduta prevista no Código de Trânsito Brasileiro como infração gravíssima, punível com multa e apreensão do veículo ( CTB, artigo 238). Ordem concedida”. A previsão de infração administrativa sem a ressalva de infração penal ou a inexistência de descrição expressa da conduta em norma penal, autoriza inferir que o sancionamento administrativo é suficiente à reprovação da conduta em face da utilização do Direito Penal em última ratio. Do contrário, estaria violado o Princípio do Ne bis in idem.
(TJ-SC – APR: 00000664320168240141, Relator: Alexandre Morais da Rosa, Data de Julgamento: 19/10/2022, Terceira Turma Recursal)
Pelo julgado acima, entendemos que o sujeito não pode ser punido criminalmente pelo delito de desobediência. Entretanto, pode ele ser sancionado na esfera administrativa pela infração prevista Código de Trânsito Brasileiro? A resposta é positiva, ao menos pela interpretação do julgado acima, pois, segundo o julgado, o que “salva” o sujeito de responder pelo crime de desobediência é justamente a possibilidade de sua responsabilização administrativa pela infração de trânsito.
4. Recusa a exame de DNA em processo de paternidade ou maternidade
De acordo com a súmula nº 301 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o sujeito que se recusa a realizar o exame de DNA será presumido como pai da criança:
Súmula 301 do STJ – ” Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.”
Nesse sentido há inúmeras decisões do STJ. Vide:
- Recurso Especial nº 1.677.900 – SC (2016/0059657-0)
- Habeas Corpus nº 669020 – PR (2021/0159344-0)
- Agravo em Recurso Especial nº 750.805 – ES (2015/0182265-5)
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