O presente texto inicia uma série de artigos nos quais pretendo abordar, sucintamente, algumas das teses jurídicas que habitualmente uso em minhas petições como advogado, em especial teses defensivas na seara criminal, fruto do conhecimento que tive a honra de absorver durante meus estágios no Poder Judiciário (Justiça Estadual e Eleitoral), no Ministério Público Estadual e na Defensoria Pública Estadual. Além de uma humilde tentativa de contribuição com os atuais e futuros juristas, o objetivo dessa série de artigos é demonstrar ao estudante de Direito o quão enriquecedor pode ser um estágio na área jurídica.
No texto, abordaremos uma tese defensiva para réu acusado por crime de corrupção de menores, delito previsto no art. 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990, tese que se sustenta na premissa de que “a lei não contém palavras inúteis”.
Habitualmente, Juízes em todo o Brasil têm condenado acusados por crimes de corrupção de menores, geralmente em concurso com outros crimes, sob o argumento de que aquele delito seria de natureza formal, ou seja, de que bastaria, para a sua configuração, a mera prática de infração penal com menor de 18 (dezoito), ou a mera indução desse a praticá-la.
Aqueles que acolhem essa tese defendem que, em sendo delito de natureza formal, o crime de corrupção de menores dispensaria prova da efetiva corrupção do inimputável, do que, contudo, ousa-se discordar.
De início, cumpre rememorar a distinção entre crime formal e crime material. Resumidamente, um crime, quando considerado material, depende, para sua consumação, da produção de um resultado naturalístico, ou seja, de que um resultado se produza no “mundo natural”, ultrapassando-se resultados no “mundo meramente jurídico”. Um crime considerado formal, por outro lado, não exige, para a sua consumação, a produção de resultado naturalístico.
Como exemplo de crime material, menciona-se o delito de homicídio, que se consuma com a efetiva morte da vítima (que é um resultado no “mundo natural”), de modo que, em não havendo morte, o delito é meramente tentado. Exemplificando o crime formal, por outro lado, tem-se o delito de ameaça, que, para a sua configuração, basta que o agente ameace alguém, por qualquer meio, de causar-lhe mal injusto e grave. Não importa, para a consumação desse crime, que a ameaça se concretize, daí porque é considerado como crime formal
Disso isso, prossegue-se.
Retornando à análise do crime de corrupção de menores, por lealdade argumentativa, reconhece-se que parcela majoritária da doutrina e da jurisprudência são no sentido de que o delito em comento seria mesmo de natureza formal, dispensando, assim, maiores provas para sustentar uma condenação.
Não se ignora, contudo, posição em sentido diverso, que, embora dissonante do senso jurídico comum, mas atenta às peculiaridades do tipo em apreço, interpreta lucidamente a lei penal para concluir pela natureza material do tipo penal sob análise.
Com efeito, o delito de corrupção de menores é assim previsto na lei:
Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Percebe-se que, ao incluir a conduta acima descrita no rol dos crimes em espécie contra menores, o legislador não se contentou em tipificar, por exemplo, apenas a “prática de infração penal com menor” ou a “indução de menor a praticar infração penal”. Pelo contrário, o legislador, de modo claro, acresceu às ações mencionadas o ato de “corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos”.
Extrai-se, pois, que a configuração do crime de corrupção de menores resulta de uma conjugação das condutas de “corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos” com a condicionante “com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la”.
Caso contrário, quisesse o legislador reprimir, na seara criminal, a “mera” prática de infração penal em conjunto com menor ou a indução desse a praticá-la, bastaria, para tanto, que o tipo do art. 244-B do ECA constasse da seguinte forma: “Praticar infração penal com menor de 18 (dezoito) anos ou induzi-lo a praticá-la”.
Prevalece, aqui, a máxima “verba cum effectu sunt accipienda” que, em tradução livre, enuncia que “a lei não contém palavras inúteis”, de modo que, se o legislador pretendesse conferir ao tipo em análise natureza formal, satisfaria dispensar os termos “corromper” e/ou “facilitar a corrupção”.
Não o fazendo, ou seja, incluindo no tipo os termos mencionados, extrai-se, com todo respeito à doutrina e jurisprudência majoritárias, que a tese da imprescindibilidade da conjugação das condutas/circunstâncias para a configuração do crime é a mais acertada, pois, num exercício de interpretação teleológica, conclui-se que essa tese é a mais alinhada à vontade do legislador da época.
Ademais, ainda que essa não fosse a intenção da norma ou do legislador, tem-se que o texto do tipo penal sob análise, da forma que foi positivado (isto é, legislado), não permite exonerar a prova da efetiva corrupção do menor como requisito de sua configuração. Do contrário, se estaria diante de interpretação extensiva da lei penal in malam partem, o que, como sabido, é vedado.
Em suma: ainda na remota hipótese de se cogitar que o legislador quisesse criminalizar a mera prática de infração penal em conjunto com criança ou adolescente sem que houvesse, contudo, necessidade de prova da efetiva corrupção do menor, tem-se que o tipo penal, da forma que atualmente vige no ordenamento jurídico, não permite dispensar tal prova para a configuração do delito.
No sentido da natureza material do crime de corrupção de menores, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. CORRUPÇÃO DE MENORES. LEI 2252/54, ART. 1.. CRIME MATERIAL. 1. A CORRUPÇÃO DE MENORES E CRIME MATERIAL, EXIGINDO PARA SUA CONFIGURAÇÃO A DEMONSTRAÇÃO DE QUE A VITIMA VEIO REALMENTE A SE CORROMPER. 2. RECURSO NÃO CONHECIDO. (REsp 79.563/DF, Rel. Ministro Edson Vidigal, DJ de 15/12/1997) No mesmo sentido: REsp 79.201/DF, Rel. Ministro Edson Vidigal, DJ de 19/05/1997, e REsp 10.848/SP, Rel. Ministro Edson Vidigal, Rel. p/ Acórdão Ministro Cid Flaquer Scartezzini, DJ de 09/12/1991.
No mesmo sentido, também há precedente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
EMBARGOS INFRINGENTES – CORRUPÇÃO DE MENOR – ABSOLVIÇÃO – NECESSIDADE – CRIME MATERIAL – EMBARGOS ACOLHIDOS. 1. A absolvição do embargante pela prática do delito de corrupção de menor é medida que se impõe quando há dúvida se o menor ao tempo do delito já era ou não corrompido, sendo o delito material . 2. Acolher os embargos (TJMG – Emb Infring e de Nulidade nº 1.0027.15.010745-9/002, Rel. Des. Pedro Vergara, DJ de 21/06/2017).
A conclusão pela natureza material do delito, embora, por certo, seja minoritária, data venia, é a que mais se adequa a uma leitura sóbria e desapaixonada do art. 244-B do ECA. Por óbvio, não se sustenta, aqui, que a prática de infração penal em conjunto com menor, por si só, não seja conduta reprovável, notadamente no campo moral, a qual, ainda, comporta sanções civis.
Todavia, em sede de Direito Penal, premente é o requisito da tipicidade, de modo que, não havendo num processo ou noutro a comprovação de que o agente tenha efetivamente corrompido os menores com os quais praticou outros delitos, não há como amoldar sua conduta ao tipo previsto no art. 244-b do ECA, porquanto não preenchidos todos os seus requisitos caracterizadores.
Por fim, não se pode ignorar que, em alguns casos, é o menor quem convida o adulto a praticar consigo algum delito, e não o contrário. Nesses casos específicos em que há a demonstração de que o menor já ostentava índole duvidosa, senão comprovadamente maculada, antes da prática do delito com o adulto, defende-se, não há falar no crime do art. 244-B do ECA, por atipicidade formal, porque, registre-se, é impossível corromper o que já está corrompido.
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