A conquista do direito de um acusado somente ser preso e iniciar o cumprimento de sua pena após uma condenação definitiva (transitada em julgado) deriva de longa evolução do Direito e da implantação, no Brasil, de normas oriundas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também do Pacto de São José da Costa Rica.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é clara ao disciplinar, em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“, consagrando o direito fundamental da presunção de inocência ou, no mínimo, da presunção de não-culpabilidade.
Não bastasse, o art. 283 do Código de Processo Penal – CPP vigente no território nacional também normatiza no mesmo sentido, disciplinando, in verbis, que “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva“.
Ora, se é certo que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória, conclui-se, por lógica, que, de igual modo, ninguém poderá ser punido até ser considerado culpado, sob pena de, aberrantemente, punir-se antecipadamente um possível inocente.
A intelecção acima, embora rechace a possibilidade de execução antecipada de pena privativa de liberdade, é perfeitamente compatível com a restrição provisória da liberdade nas espécies de prisão em flagrante, prisão preventiva e prisão temporária, pois, como sabido, essas se alicerçam em fundamentos outros que não a assunção automática de culpa de um acusado.
A manutenção dessas prisões provisórias (também conhecidas como prisões processuais) no ordenamento jurídico pátrio é, e sempre foi, necessária, pois possibilitam a continuidade da investigação de um crime e também servem à garantia da ordem pública, da ordem econômica, à conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que preenchidos os requisitos legais para tal.
Contudo, não convence o argumento “contrário à impunidade” que vem sendo utilizado para fundamentar a possibilidade de prisão penal antes de uma condenação definitiva, ou seja, de execução antecipada da pena, com base apenas em uma condenação em segunda instância da qual ainda estão pendentes recursos.
É que, conforme se demonstrará, analisando-se a execução antecipada da pena sob os prismas ético e utilitarista, chega-se, de igual modo, à conclusão pelo seu não cabimento.
Com efeito, sob o prisma ético, mais especificamente ético-lógico-jurídico, já que se toma como parâmetro para tal a lei estatal juspositivada, fundada na autoridade do Estado de emanar normas (embora não se ignore a existência de modelos éticos fundados na natureza, na razão, etc.), tem-se que a execução antecipada da pena, como já adiantado, encontra barreira no art. 5º, LVII, da CF/88, e no art. 283 do CPP, dispositivos que, claramente e estreme de dúvidas, vedam considerar alguém culpado até que haja uma decisão penal condenatória definitiva, o que só ocorre com o trânsito em julgado.
Nessa toada, já que, infelizmente, o Direito pátrio, aparentemente, vem sofrendo indevidas restrições das garantias processuais duramente conquistadas ao longo do tempo, talvez devido a intoxicações oriundas dos anseios populares de ocasião, socorre-se da Filosofia e da Lógica para sustentar-se que bastam apenas dois silogismos simples para concluir-se pela impossibilidade da execução antecipada da pena.
Para tanto, desenhemos o seguinte caso hipotético: um réu foi condenado em primeira instância, por crime de tráfico (Lei nº 11.343/06 – art. 33) a uma pena de 12 (doze) anos de reclusão. No processo, foi acusado de que iria “receber” drogas remetidas por terceiro. Insatisfeito com a condenação, entendendo ser atípica a conduta de receber drogas, interpôs recurso de apelação, que será julgado por Câmara Criminal que já firmou entendimento “contrário à impunidade” no sentido de admitir a execução antecipada da pena a partir da condenação em segunda instância.
Nesse caso, se a Câmara entender típica a conduta de “receber” drogas, negará provimento ao recurso do réu e, diante do entendimento já firmado, o submeterá ao cumprimento de pena a partir da confirmação da condenação em segunda instância, negando-lhe o direito de recorrer em liberdade.
Frise-se que, nesse caso, a matéria controvertida é jurídica, e não fática, admitindo, assim, interposição de recurso especial, que, se eventualmente provido, absolveria o réu. Contudo, nesse mesmo cenário, ainda que absolvido, se admitida a execução antecipada da pena, o réu já teria “cumprido” ao menos parte da reprimenda, ficando preso por dias, meses ou até por anos até o julgamento de seu recurso especial, ou seja, sofreria consequências penais sem que ainda tivesse transitado contra si sentença penal condenatória.
Pois bem. Desenhado o cenário, prossigamos.
O primeiro silogismo que se evoca tem, por premissa maior, o enunciado normativo de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória e, por premissa menor, o fato processual de que, até o presente, no cenário hipotético aqui desenhado, não houve o trânsito em julgado de sentença penal condenatória contra o réu, desembocando na conclusão de que, desse modo, o réu não pode ser considerado culpado.
O segundo silogismo, por seu turno, tem, por premissa maior, o enunciado lógico de que ninguém pode ser punido criminalmente (no sentido técnico-jurídico de “punição”) sem ser considerado definitivamente culpado, e, por premissa menor, o fato de que, até o presente, o réu não foi considerado definitivamente culpado, o que desagua na conclusão de que o réu não pode ser punido, isto é, sofrer execução antecipada da pena, até ser considerado definitivamente culpado (o que ainda não ocorreu, pois pendem recursos possíveis, tal qual recurso especial).
Data maxima venia, negar as conclusões acima só é possível se alteradas as suas premissas, o que, no caso hipotético exposto, incorre em equívoco, porque:
- a premissa de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória deriva de norma constitucional que garante direito fundamental e, portanto, se não poderia sequer ser suprimida por Emenda Constitucional, menos ainda o poderia pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição;
- a premissa de que não houve o trânsito em julgado de sentença penal condenatória contra o réu é verdade patente no caso hipotético desenhado;
- a premissa de que ninguém pode ser punido criminalmente sem ser considerado definitivamente culpado deriva de conclusão lógica, pois a sua negativa implicaria possibilitar punir um possível inocente, o que é aberrante e incontroversamente inadmissível;
- a premissa de que, até o momento, o réu não foi considerado definitivamente culpado também é verdade patente no caso hipotético desenhado.
Desse modo, data venia, reputa-se como indubitável que, sob o prisma ético-lógico-jurídico, autorizar a execução antecipada da pena, além de violar as normas constitucionais e legais, viola também postulados lógico-filosóficos decorrentes de tais normas, daí porque a conclusão pelo seu não cabimento.
Por outro lado, sob o prisma utilitário, a tese da possibilidade da execução antecipada da pena também não merece melhor sorte. Com efeito, ainda que alguns defensores de tal tese argumentem que seja necessária para “evitar-se a impunidade”, “evitando-se a prescrição penal”, conforme se verá, tal argumento é raso e não encontra respaldo no sistema jurídico pátrio.
Ora, é certo que evitar a impunidade é objetivo desejável de qualquer sociedade que se pretenda minimamente justa e permanente. O mal, por vezes manifestado no cometimento de ilícitos penais, deve ser combatido na forma da lei e reprimido, de modo que a pena é útil para retribuir o mal causado ao ofensor, retirar indivíduo perigoso do convívio social, prevenir o cometimento de ilícitos por outros indivíduos e, quando possível, reeducar e ressocializar o sujeito em conflito com a lei (a reeducação é desejável, mas, infelizmente, parece nem sempre ser possível).
Todavia, é imperioso ressaltar que, embora até possa aparentar, nem toda ação que visa ao recrudescimento da Justiça Penal, tal qual o é a execução antecipada da pena, tem por consequência o fim pretendido de “evitar a impunidade”, o que, por si só, já denuncia o caráter falacioso daqueles que “metralham” sugestões de medidas de endurecimento da Justiça Penal sem ter o mínimo compromisso de verificar se tais medidas são aptas, no mínimo, a alcançar os fins pretendidos.
No caso específico da execução antecipada da pena, conforme já demonstrado, a situação se agrava mais ainda porque essa, sob o pretexto de “combater a impunidade”, renuncia a séculos, quiçá milênios, de evolução do Direito que desembocaram na premissa mínima de que alguém só pode ser punido se condenado em um processo com regras preestabelecidas e após esgotadas as chances de recursos nesse processo.
Finalmente, diz-se que a execução antecipada da pena não é apta a “combater a impunidade evitando-se a prescrição”, porque, felizmente, o Código Penal brasileiro já é apto a solucionar a questão sem sacrificar garantias processuais duramente conquistadas.
É que, vale dizer, o Código Penal prevê, em seu art. 117, com extrema clareza, causas interruptivas da prescrição, que, como sabido, “zeram”, isto é, fazem com que, uma vez ocorridas, o prazo prescricional volte a correr do início. Dentre essas causas interruptivas da prescrição tem-se, no inciso IV, a “publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis”.
Ora, se a publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis, no caso hipotético desenhado, já é apta a “zerar”, isto é, interromper o fluxo da contagem do prazo prescricional – que, para o crime sob análise, é de no mínimo 16 (dezesseis) anos, isso considerando a pena máxima abstrata e desconsiderando causas de aumento de pena, etc. –, tem-se que o Poder Judiciário brasileiro terá, a partir da publicação do acórdão, incríveis 16 (dezesseis) anos para julgar eventuais recursos interpostos contra a decisão colegiada.
Com certeza o prazo acima é muito mais do que suficiente para o Poder Judiciário pátrio julgar a causa, já que, embora assoberbado de processos, vem sendo capaz de julgá-los em tempo inferior ao acima mencionado, de acordo com o relatório Justiça em Números, confeccionado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que reúne dados sobre o sistema judiciário brasileiro, apresentando, inclusive, o tempo de tramitação médio de processos.
Desmonta-se, assim, os argumentos “contrários à impunidade” em relação à possibilidade da execução antecipada da pena, que, data venia, equivocadamente vêm sendo evocados e que, conforme se demonstrou, estão incorretos tanto sob o aspecto ético quanto sob o aspecto utilitário.
Muito mais poderia ser dito aqui, é claro. Poder-se-ia, com toda certeza, aprofundar-se na evolução história do princípio da presunção de inocência e no porquê da necessidade de sua observância incontinenti, sobretudo na esfera do Direito Penal.
Poder-se-ia, ainda, fazer longas menções aos votos favoráveis à “tese” – que, em verdade, de tese não tem nada, pois deriva de expressa previsão constitucional – aqui exposta prolatados no Habeas Corpus nº 126.292/SP, de julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, votos que, embora vencidos, data maxima venia, estão no sentido correto ao vedarem a execução antecipada da pena.
Contudo, os argumentos lançados naquele habeas corpus são de conhecimento da comunidade jurídica e, certamente, do leitor, de modo que aqui não são repetidos, o que se faz visando evitar desnecessária tautologia.
Entretanto, vale citar o voto prolatado pelo Excelentíssimo Desembargador Doorgal Andrada, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG, nos autos da apelação criminal nº 1.0002.18.001592-3/001, onde, assim como em vários outros casos, vem consignando:
A regra da “presunção de inocência ou não culpabilidade” diz respeito exatamente ao direito de a pessoa humana não ser presa nem estar condenada. E, estar condenada, significa não poder mais ser absolvida juridicamente, ou seja, ter contra si um processo transitado em julgado e irrecorrível.
A condenação criminal definitiva extingue para o réu, a “presunção da não culpabilidade” e/ou da “presunção da inocência”. Não há como entender o significado jurídico da “presunção da inocência e/ou da não culpabilidade” dissociado da análise da condenação transitada em julgado, pois uma existe em oposição à outra. Logo, dar tratamento de condenado ao réu que não foi julgado em definitivo, com ampla defesa e contraditório ainda em andamento (passível de recursos), é ferir os princípios constitucionais do direito a liberdade (fl. 184-v) – grifos do autor.
Cita-se, ainda, que, conforme mencionado no voto acima referido, o próprio Supremo Tribunal Federal, em 2017, nos julgamentos dos HC 135.392/SP, HC 137.063, HC 142.173/SP, HC 142.017-MC/DF, HC 144.712-MC/SP, 145.380-MS/SP, HC 146.006-MC/PE e HC 145.380-MS/SP, vem se posicionando de maneira diversa ao entendimento definido no HC 126.292/SP e nas ADC’s nº 43 e 44.
Desse modo, por uma análise legalista da matéria, e, ainda, nos planos ético-lógico-jurídico e utilitário, conclui-se pela vedação da execução antecipada da pena.
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