RESUMO: O presente artigo analisa a má-fé como requisito para a repetição do indébito em dobro nas relações consumeristas, isso é, se a caracterização da má-fé é necessária para que, havendo pagamento de quantia indevida por parte do consumidor, esse possa ser ressarcido em dobro. Analisa, ainda, a quem incumbiria a prova de tal má-fé, bem como se o incumbido de eventualmente prová-la seria o consumidor, provando sua existência, ou o fornecedor, provando sua inexistência. Perpassa pelos princípios atinentes às relações de consumo e por análise topológica do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor.
1 INTRODUÇÃO
A Lei nº 8.078/1990, que estabelece o Código de Defesa do Consumidor – CDC, é tida por alguns como referência mundial sobre a regulamentação das dinâmicas do mercado de consumo. Os diversos institutos e mecanismos jurídicos nela previstos, bem como os direitos básicos do consumidor nela declarados e a Política Nacional de Relações de Consumo que inaugura, somados a outros aspectos, certamente contribuem para a boa manutenção das relações de consumo.
Não obstante, os princípios aplicáveis ao Direito do Consumidor, reforçados pelo Código, servem habilmente como verdadeiras balizas e nortes para a administração da Justiça nas relações consumeristas, sabidamente marcadas por disparidade entre as partes.
Aliás, esse cenário de incontroversa disparidade foi precisamente o que deu causa ao surgimento de alguns princípios específicos, tais como os princípios do protecionismo, da vulnerabilidade e da hipossuficiência do consumidor, e, ainda, os princípios da função social do contrato consumerista e da equivalência negocial.
Bem por isso que o estudo dos princípios atinentes às relações consumeristas se demonstra de especial relevância. É que, a depender da interpretação principiológica adotada, certas regras serão interpretadas de maneira mais ou menos favorável ao consumidor, como no caso do objeto do presente trabalho, ou seja, se a má-fé seria requisito dispensável ou indispensável para a repetição do indébito em dobro em favor do consumidor, conforme se verá.
2 DESENVOLVIMENTO
De início, destaca-se o acerto legislativo havido na positivação dos princípios consumeristas. É que o legislador, atento às rápidas evoluções do mercado de consumo, preferiu estabelecer alguns conceitos legais sem buscar necessariamente a sua determinação e especificação total, evitando, assim, tornar a lei obsoleta já na sua promulgação. Nesse sentido, Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves asseveram:
O estudo dos princípios consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor é um dos pontos de partida para a compreensão do sistema adotado pela Lei Consumerista como norma protetiva dos vulneráveis negociais. Como é notório, a Lei 8.078/1990 adotou um sistema aberto de proteção, baseado em conceitos legais e indeterminados e construções vagas, que possibilitam uma melhor adequação dos preceitos às circunstâncias do caso concreto (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 42).
No estudo dos princípios atinentes às relações de consumo, então, destaca-se inicialmente o princípio do protecionismo do consumidor, previsto no art. 1º do CDC, segundo o qual o Código Consumerista estabelece, claramente, que as normas de proteção e defesa do consumidor nele positivadas são de ordem pública e de interesse social, disso se sucedendo, portanto, algumas consequências.
A primeira delas é a de que as regras do Código de Defesa do Consumidor “não podem ser afastadas por convenção entre as partes, sob pena de nulidade absoluta”, de modo que “são nulas de pleno direito as cláusulas abusivas, que estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor” (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 46).
A segunda consequência é a de que “cabe sempre a intervenção do Ministério Público em questões envolvendo problemas de consumo” (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 46), sendo a instituição legitimada, por exemplo, para atuar em demandas coletivas envolvendo danos materiais e morais aos consumidores, segundo a Lei nº 7.347/1985, que trata da Ação Civil Pública.
A terceira consequência, ademais, é a de que “toda proteção constante da Lei Protetiva deve ser conhecida de ofício pelo juiz, caso da nulidade de eventual cláusula abusiva” (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 46), de modo que o CDC estabelece claramente não só a possibilidade, mas sim o dever do julgador aplicar os comandos contidos no Código, podendo, inclusive, declarar de ofício, ou seja, sem provocação, a nulidade de cláusulas contratuais abusivas.
Destaca-se, ainda, o princípio previsto no art. 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que impõe o dever de reconhecimento da vulnerabilidade de todos os consumidores no mercado de consumo, vulnerabilidade que se subdivide em, no mínimo, quatro espécies.
A primeira delas é a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, que “caracteriza-se quando se observa um grande poder econômico do fornecedor sobre o consumidor”, o que ocorre, por exemplo, quando uma empresa detém o monopólio no fornecimento de serviços essenciais, como distribuição de água (FERRACIOLLI, 2017, p. 846).
A segunda é a vulnerabilidade técnica, que incide “quando o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre o produto ou serviço pelo fato de que o fornecedor os detém em sua plenitude”, sendo “presumida para o consumidor não profissional” (FERRACIOLLI, 2017, p. 846).
A terceira é a vulnerabilidade jurídica ou científica, que se configura pela “ausência de conhecimentos jurídicos específicos, de contabilidade ou de economia por parte do consumidor, sendo presumida para o não profissional e para o consumidor pessoa física” (FERRACIOLLI, 2017, p. 846). Por outro lado, em se tratando de consumidores profissionais e pessoas jurídicas, a presunção é em sentido contrário, ou seja, é no sentido de que não são juridicamente ou cientificamente vulneráveis (FERRACIOLLI, 2017).
A quarta é a vulnerabilidade informacional, consistindo na mais frequentemente experimentada pelo consumidor atualmente, porque, nas relações de consumo modernas, “ora há a ausência de informação essencial para que se porte adequadamente no mercado de consumo, ora ela é manipulada ou exagerada, justamente para confundi-lo”, sendo, portanto, “a modalidade que mais justifica a proteção ao consumidor, pelo fato de a informação inadequada sobre produtos e serviços ser potencial geradora de inúmeros danos” (FERRACIOLLI, 2017, p. 846).
Há, também, o princípio da hipossuficiência do consumidor, previsto no art. 6º, VIII, do CDC, que, como o nome sugere, enuncia a possibilidade (e não obrigatoriedade) de reconhecer-se a hipossuficiência do consumidor, concebida como disparidade concreta do consumidor perante o fornecedor, inclusive possibilitando, em favor daquele, a inversão do ônus da prova.
Frise-se que, diferentemente da vulnerabilidade, que é presumida para todo consumidor, a hipossuficiência não o é, ou seja, depende da comprovação e reconhecimento pelo julgador para que então dela decorram seus efeitos benéficos ao consumidor.
É que, “ao contrário do que ocorre com a vulnerabilidade, a hipossuficiência é um conceito fático e não jurídico, fundado em uma disparidade ou discrepância notada no caso concreto”, de modo que “todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente” (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 50).
A doutrina destaca, ainda, a existência de, no mínimo, duas modalidades de hipossuficiência, quais sejam: 1) hipossuficiência fática ou socioeconômica e 2) hipossuficiência jurídica. Os conceitos, é certo, relacionam-se com os das modalidades de vulnerabilidade, mas é importante notar algumas diferenças.
Isso porque, se, como já dito, a vulnerabilidade é um conceito jurídico e a hipossuficiência é um conceito fático, faz-se necessário, para aferir essa última, que se verifique a sua incidência caso a caso. Assim, a principal diferença entre a vulnerabilidade jurídica e a hipossuficiência jurídica é que, enquanto a primeira pressupõe a ausência de conhecimentos jurídicos por parte do consumidor, a segunda ocorre quando é difícil ou impossível ao consumidor obter a prova num processo.
No ponto, é a lição de Flávio Tartuce e Daniel Neves, citando Roberto Senise Lisboa:
A hipossuficiência, conforme ensina a doutrina, pode ser técnica, pelo desconhecimento em relação ao produto ou serviço adquirido, sendo essa a sua natureza perceptível na maioria dos casos. Nessa linha, aponta Roberto Senise Lisboa que “O reconhecimento judicial da hipossuficiência deve ser feito, destarte, à luz da situação socioeconômica do consumidor perante o fornecedor (hipossuficiência fática). Todavia, a hipossuficiência fática não é a única modalidade contemplada na noção de hipossuficiência, à luz do art. 4º da Lei de Introdução. Também caracteriza hipossuficiência a situação jurídica que impede o consumidor de obter a prova que se tornaria indispensável para responsabilizar o fornecedor pelo dano verificado (hipossuficiência técnica). Explica-se. Muitas vezes o consumidor não tem como demonstrar o nexo de causalidade para a fixação da responsabilidade do fornecedor, já que este é quem possui a integralidade das informações e o conhecimento técnico do produto ou serviço defeituoso”.
Desse modo, o conceito de hipossuficiência vai além do sentido literal das expressões pobre ou sem recursos, aplicáveis nos casos de concessão dos benefícios da justiça gratuita, no campo processual. O conceito de hipossuficiência consumerista é mais amplo, devendo ser apreciado pelo aplicador do direito caso a caso, no sentido de reconhecer a disparidade técnica e informacional, diante de uma situação de desconhecimento, conforme reconhece a melhor doutrina e jurisprudência (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 50).
Ainda, dispondo sobre os efeitos do reconhecimento da hipossuficiência do consumidor, asseveram os sobreditos autores:
Como antes se adiantou, decorrência direta da hipossuficiência é o direito à inversão do ônus da prova a favor do consumidor, nos termos do art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990, que reconhece como um dos direitos básicos do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”. A matéria é de grande interesse para a defesa individual e coletiva dos consumidores em juízo (…).
Concluindo (…), pode-se dizer que a hipossuficiência do consumidor constitui um plus, um algo a mais, que traz a ele mais um benefício, qual seja a possibilidade de pleitear, no campo judicial, a inversão do ônus de provar, conforme estatui o art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990. Nesse ponto, cumpre repisar mais uma vez, diferencia-se da vulnerabilidade, conceito jurídico indeclinável que justifica toda a proteção constante do Código do Consumidor, em todos os seus aspectos e seus preceitos (TARTUCE e NEVES, 2018, pp. 50/51).
O CDC dispõe, ainda, sobre o princípio da boa-fé, que, segundo a doutrina, representa o “coração” do Código e está previsto em seu art. º, III, que assim dispõe:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…)
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (BRASIL, 1990).
Dispondo mais especificamente sobre a boa-fé objetiva, a doutrina ensina:
Como é notório, a boa-fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano psicológico ou intencional (boa-fé subjetiva), para o plano concreto da atuação humana (boa-fé objetiva). Pelo conceito anterior de boa-fé subjetiva, relativo ao elemento intrínseco do sujeito da relação negocial, a boa-fé estaria incluída nos limites da vontade da pessoa. Esse conceito de boa-fé subjetiva, condicionado somente à intenção das partes, acaba deixando de lado a conduta, que nada mais é do que a própria concretização dessa vontade. E como se sabe, conforme o dito popular, não basta ser bem intencionado, pois de pessoas bem intencionadas o inferno está cheio. (…)
Da atuação concreta das partes na relação contratual é que surge o conceito de boa-fé objetiva, que, nas palavras de Claudia Lima Marques, Herman Benjamin e Bruno Miragem, constitui uma regra de conduta. Na mesma linha, conforme reconhece o Enunciado n. 26 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, a boa-fé objetiva vem a ser a exigência de um comportamento de lealdade dos participantes negociais, em todas as fases do negócio. A boa-fé objetiva tem relação direta com os deveres anexos ou laterais de conduta, que são deveres inerentes a qualquer negócio, sem a necessidade de previsão no instrumento. Entre eles merecem destaque o dever de cuidado, o dever de respeito, o dever de lealdade, o dever de probidade, o dever de informar, o dever de transparência, o dever de agir honestamente e com razoabilidade (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 52).
Como se denota, então, no Direito Brasileiro a boa-fé é pressuposto de qualquer relação negocial, seja ela praticada nos âmbitos consumerista ou civil estrito, de modo que a sua previsão expressa no art. 4º, III, do CDC é, por muitos, criticada como uma obviedade e, portanto, desnecessária.
Sem adentrar no escopo das críticas, vale salientar que o Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer expressamente a boa-fé como pilar também das relações consumeristas, ao menos teve o mérito de tornar incontroversa a classificação de algumas de suas normas como verdadeiros comandos da boa-fé objetiva.
É que, cumpre ressaltar, se a boa-fé subjetiva pode ser resumida naquilo que se espera que o sujeito faça numa relação negocial, a boa-fé objetiva, por outro lado, é precisamente aquilo que o ordenamento jurídico impõe que se faça nessas relações, daí o nome “objetiva”, já que os parâmetros para sua aferição são bem mais definidos – inclusive em lei – do que a mera crença do que se espera que o outro faça.
Bem por isso que alguns comandos do Código de Defesa do Consumidor representam autênticos exemplos da boa-fé objetiva nas relações consumeristas, tais como: 1) o dever do prestador ou fornecedor de informar ao consumidor quanto ao perigo e à nocividade de produto ou serviço que coloca no mercado (CDC, art. 9º); 2) a necessidade de informações precisas quanto à essência, quantidade e qualidade do produto ou serviço (CDC, art. 31); 3) a vedação à publicidade simulada, abusiva e enganosa (CDC, arts. 36 e 37, respectivamente), etc.
Assim, apenas do que foi exposto até o momento, já se pode concluir o seguinte: a) todo consumidor é, por definição, vulnerável, pois, dentre outros, ser vulnerável é requisito para ser consumidor, de modo que todo consumidor apresenta ao menos uma das modalidades de vulnerabilidade, ainda que não ostente outras modalidades; b) alguns consumidores são hipossuficientes, seja na modalidade fática/socioeconômica, seja na modalidade jurídica; c) a boa-fé é pilar e requisito explícito das relações negociais consumeristas, havendo, inclusive, comandos normativos exemplificativos do que se espera de tais relações negociais, verdadeiros exemplos da boa-fé em sua modalidade objetiva.
Como visto, as normas jurídicas de proteção e defesa ao consumidor são de ordem pública e interesse social, não podendo, portanto, ser derrogadas por cláusulas contratuais (exceto na parcela em que a lei expressamente autoriza deliberação contratual), de modo que seus princípios servem à interpretação de todos os institutos já previstos no Direito Civil quando transportados ao Direito do Consumidor, no que couberem.
E nisso se insere, portanto, o regramento para o procedimento de cobrança de dívidas, procedimento que, nas relações consumeristas, é tratado na Seção V do CDC, que assim dispõe:
SEÇÃO V
Da Cobrança de Dívidas
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável (BRASIL, 1990).
Veja-se, então, que o parágrafo único do art. 42 do CDC trata da possibilidade de repetição do indébito em dobro em favor do consumidor, de modo que, em uma relação consumerista, se o consumidor por algum motivo é cobrado por quantia indevida e efetivamente paga tal quantia, esse passa a ter o direito de cobrá-la em dobro, com correção monetária e juros.
A norma estabelece claramente apenas uma exceção para esse sobredito direito, qual seja, se a cobrança se deu por hipótese de engano justificável. Não há qualquer outra exceção prevista legalmente e, em sendo as normas consumeristas de caráter público e de relevante interesse social, não pode haver deliberação contratual que inclua outras exceções, porque tal suprimiria direitos dos consumidores.
Ocorre que parcela da jurisprudência parece vir interpretando confusamente o referido dispositivo legal, concluindo que a obrigação de repetir o indébito em dobro só existiria quando houvesse má-fé por parte de quem cobra e, mais gravemente, concluindo também que competiria ao consumidor provar a existência de tal má-fé e não ao fornecedor provar a sua inexistência.
Cita-se, por exemplo, a seguinte ementa de acórdão de lavra da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que, julgando caso que envolvia instituição financeira, concluiu pela inaplicabilidade do parágrafo único do art. 42 do CDC, entendendo que a repetição do indébito em dobro exige prova da má-fé por parte do credor, entendendo, ainda, que tal prova compete ao consumidor pagante:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO CUMULADA COM DANOS MORAIS. TRIBUNAL DE ORIGEM CONCLUIU QUE NÃO HOUVE PROVA DA MÁ-FÉ DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. INAPLICABILIDADE DO ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC. RESTITUIÇÃO SIMPLES. ACÓRDÃO ESTADUAL DE ACORDO COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83/STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. “A repetição em dobro de valores indevidamente cobrados e/ou descontados exige a demonstração da má-fé do credor” (AgRg no AREsp 167.156/RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 1º/12/2015, DJe de 03/12/2015). 2. No caso, o Tribunal de origem, com arrimo no acervo fático-probatório carreado aos autos, concluiu que não ficou demonstrada a má-fé ou dolo da instituição financeira, concluindo pela repetição do indébito na forma simples. 3. Estando o v. acórdão estadual em consonância com a jurisprudência do STJ, o apelo nobre encontra óbice na Súmula 83/STJ. 4. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp 1501756/SC, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 10/10/2019, DJe 25/10/2019).
Assim, para parcela da jurisprudência, representada pela ementa acima, a repetição do indébito na forma simples seria a regra e a exceção seria a repetição do indébito na forma dobrada, de modo que, mesmo sendo comprovado o indébito, se não houvesse prova de má-fé na cobrança indevida, a repetição teria de ser simples, o que, crê-se, afigura-se equivocado.
Isso porque a leitura atenta ao parágrafo único do art. 42 do CDC deixa claro, semanticamente e topologicamente, que, em verdade, a regra é a de repetição do indébito em dobro das quantias cobradas indevidamente e que a hipótese de repetição apenas na modalidade simples é a exceção, que só se daria quando provado o engano justificável.
Diz-se que a clareza é também topológica porque, logicamente, ao se tratar de um instituto, trata-se primeiro das regras a ele atinentes para, só então, tratar-se das exceções, o que é feito com maestria no parágrafo único do art. 42 do CDC, já que primeiro trata-se da regra (repetição do indébito em dobro) para, só então, ao final do texto, tratar-se da exceção (repetição do indébito na forma simples quando comprovado o engano justificável).
Não bastasse, caso se considere também os princípios que regem as relações consumeristas ou mesmo a finalidade da legislação consumerista (chamada interpretação teleológica)[1], chegar-se-á à mesma conclusão: a repetição do indébito em regra é em dobro e a prova de eventual engano justificável, que a autorize na forma simples, compete a quem cobra indevidamente e não ao consumidor que é cobrado, não se podendo exigir desse prova negativa, isso é, prova do que não ocorreu.
Exigir prova de tamanha complexidade por parte do consumidor, além de frustrar os princípios consumeristas (como o que impõe o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor), também incorre em verdadeira exigência de prova diabólica[2], já que é impossível ou extremamente difícil provar algo que não ocorreu (prova negativa), daí porque mais equânime que se exija da parte contrária prova de que algo (engano justificável) ocorreu.
Aliás, se já é impossível ou muito difícil provar que algo não ocorreu, com mais certeza é impossível ou extremamente difícil ao consumidor provar algo que não ocorreu no interior das dependências (físicas ou virtuais) do estabelecimento comercial do fornecedor e em relação aos seus funcionários, de modo que se torna tarefa hercúlea ou quase divina para o consumidor provar que, durante toda a cadeia negocial, passando pelas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual, não houve em qualquer momento engano justificável por parte do fornecedor.
Essa dificuldade/impossibilidade probatória se agrava mais ainda quando se tratar de consumidor não profissional e/ou consumidor pessoa física, já que, como visto, esses são presumidamente vulneráveis juridicamente. Aliás, soma-se a isso mais um grau de dificuldade probatória quando se tratar de consumidor que tenha em seu favor reconhecida a hipossuficiência jurídica, porque, como também já visto, esse tem presumida dificuldade probatória.
Desse modo, extrai-se que o entendimento mais acertado é no sentido aqui defendido, entendimento que subsiste até mesmo se por acaso afastado o princípio da vulnerabilidade, inerente às relações de consumo, ou mesmo se não reconhecido, no caso concreto, a hipossuficiência do consumidor.
Com efeito, mesmo que eventualmente o legislador proceda a uma alteração substancial nas Disposições Gerais do CDC, refazendo-as por completo, afastando a presunção de vulnerabilidade das relações de consumo e/ou a possibilidade de reconhecimento da hipossuficiência, basta que mantenha inalterado o parágrafo único do art. 42 do CDC para que subsista a conclusão aqui aviada, que subsiste mesmo desvinculada dos sobreditos princípios, pois já se sustentaria tão somente na literalidade do dispositivo citado, embora reforçada por princípios e outros dispositivos.
Aliás, se as normas consumeristas são de ordem pública e, portanto, insertas ainda que implicitamente nos contratos celebrados entre consumidores e fornecedores, certo é que, havendo dúvida sobre a interpretação do parágrafo único do art. 42 do CDC, a interpretação que deve prevalecer é a mais favorável ao consumidor, já que o art. 47 do mesmo Código estabelece expressamente que “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.
3 CONCLUSÃO
Como visto, por ser o art. 42, parágrafo único, do CDC, taxativo ao disciplinar claramente, semanticamente e topologicamente, que a regra para as cobranças indevidas é a repetição do indébito em dobro, sendo a repetição do indébito na forma simples uma exceção, operada apenas quando há engano justificável, cuja prove incumbe ao fornecedor, a conclusão é no sentido de que é desnecessário que o consumidor prove que houve má-fé por parte do fornecedor para que seja reconhecida, em favor daquele, a repetição do indébito em dobro.
Embora a conclusão se sustente na literalidade da norma acima citada, dispensando maior aprofundamento teórico, também conclui-se que os princípios que regem as relações consumeristas reforçam a sobredita conclusão e, não bastasse, conclui-se que ainda que houvesse dúvida sobre a matéria, a solução a ser adotada deve ser a mais favorável ao consumidor, que coaduna com a repetição do indébito em dobro, de acordo com o art. 47 do CDC, que trata das cláusulas contratuais, já que as normas consumeristas são de ordem pública e, assim sendo, são insertas ainda que implicitamente nos contratos.
4 REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1990.
DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela – 10ª ed. – Salvador: Jus Podivm, 2015.
FERRACIOLLI, Renan Bueno. OAB 1ª fase: volume único – 1ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2017.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1501756/SC. Relator: Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado no dia 10/10/2019 e publicado no DJe de 25/10/2019.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual – 7ª ed. – Rio de Janeiro; São Paulo: Método, 2018.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. I – 56ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[1] No ponto, tratando sobre o ônus da prova nas ações consumeristas, são as lições de Humberto Theodoro Júnior: “É importante, outrossim, aplicar a inversão do ônus da prova no sentido teleológico da lei consumerista, que não teve o propósito de liberar o consumidor do encargo probatório previsto na lei processual, mas apenas o de superar dificuldades técnicas na produção das provas necessárias à defesa de seus direitos em juízo” (THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 1147).
[2] Dispondo sobre a distribuição dinâmica do ônus da prova, Fredie Didier Júnior trata do tema prova diabólica: “A prova diabólica é aquela cuja produção é considerada como impossível ou muito difícil. Trata-se de ‘expressão que se encontra na doutrina para fazer referência àqueles casos em que a prova da veracidade da alegação a respeito de um fato é extremamente difícil, nenhum meio de prova sendo capaz de permitir tal demonstração’” (DIDIER JR., Fredie, 2015, 114).
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