CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O princípio da legalidade tem matriz constitucional no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal 1988, e matriz legal no art. 1º do Código Penal.
Do princípio da legalidade (gênero) desdobram-se dois outros princípios (espécies), a saber, o princípio da reserva legal e o princípio da anterioridade da lei penal.
ASPECTOS DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
ASPECTO POLÍTICO
No campo penal, o princípio da legalidade “corresponde a uma aspiração básica e fundamental do homem, qual seja, a de ter uma proteção contra qualquer forma de tirania e arbítrio dos detentores do exercício do poder, capaz de lhe garantir a convivência em sociedade, sem o risco de ter a sua liberdade cerceada pelo Estado, a não ser nas hipóteses previamente estabelecidas em regras gerais, abstratas e impessoais” (CAPEZ, 2020, p. 126).
ASPECTO HISTÓRICO
O princípio da legalidade surgiu pela primeira vez na Magna Charta Libertatum, documento imposto pelos barões ingleses ao rei João Sem Terra, no ano de 1215, cujo art. 39 previa que nenhum homem livre poderia ser submetido a pena não prevista em lei local (CAPEZ, 2020).
Contudo, foi somente no final do século XVIII, sob a influência do iluminismo, que o princípio ganhou força e efetividade, “passando a ser aplicado com o objetivo de garantir segurança jurídica e conter o arbítrio” (CAPEZ, 2020, p. 126).
No ano de 1762, com a Teoria do Contrato Social, de Jean Jacques Rousseau, o princípio da legalidade teve enorme impulso: “o cidadão só aceitaria sair de seu estado natural e celebrar um pacto para viver em sociedade, se tivesse garantias mínimas contra o arbítrio, dentre as quais a de não sofrer punição, salvo nas hipóteses previamente elencadas em regras gerais, objetivas e impessoais” (CAPEZ, 2020, p. 126).
No ano de 1764, o marquês Cesare, de Beccaria, em sua obra “Dos delitos e das penas”, influenciado por Rousseau, escreveu que “’só as leis podem decretar as penas dos delitos e esta autoridade deve residir no legislador, que representa toda a sociedade unida pelo contrato social’” (BECCARIA apud CAPEZ, 2020, p. 127).
Ainda, a Teoria da Separação dos Poderes, de Montesquieu, contribuiu com o princípio da legalidade na medida em que impedia que o juiz, usurpando função própria do Legislativo, considerasse como criminosas condutas não previamente estabelecidas pelo legislador.
ASPECTO JURÍDICO
No aspecto jurídico, melhor síntese do princípio da legalidade não há que não o próprio artigo primeiro do Código Penal, que preconiza o seguinte: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.
O mencionado artigo prevê o princípio da legalidade em suas duas facetas, a da reserva legal e a da anterioridade, pois determina que só há crime com lei (excluindo-se, portanto, quaisquer atos normativos diferentes de lei) anterior que o defina (excluindo-se, portanto, a possibilidade de uma lei posterior retroagir no tempo para contemplar condutas passadas que até então não fossem consideradas como crime).
PRINCÍPIOS INERENTES AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Segundo esse princípio, “somente a lei, em seu sentido mais estrito, pode definir crimes e cominar penalidades, pois ‘a matéria penal deve ser expressamente disciplinada por uma manifestação de vontade daquele poder estatal a que, por força da Constituição, compete a faculdade de legislar, isto é, o poder legislativo’” (BETTIOL apud CAPEZ, 2020, p. 129).
RESERVA ABSOLUTA DE LEI
Somente lei, produzida pelo Poder Legislativo mediante processo legislativo próprio, pode prever crimes e cominar penas. Assim, por exemplo, não pode um ato do Poder Executivo prever um crime. Também não pode um ato do Poder Judiciário prever um crime, pois, apesar de os crimes serem julgados pelo Judiciário, não cabe a esse poder criar tipos penais, mas somente verificar a existência de fatos e se esses fatos correspondem a tipos penais já existentes. Por fim, também não pode um ato do Poder Legislativo, como uma portaria, por exemplo, prever crimes, pois, ainda que se trate do Poder Legislativo, somente lei em sentido estrito, aprovada pelo Congresso Nacional na forma da Constituição, pode estabelecer crimes.
RESERVA ABSOLUTA DE LEI E MEDIDA PROVISÓRIA
De igual modo, apesar de medidas provisórias terem força de lei e precisem ser convertidas pelo Poder Legislativo, sob pena de perderem eficácia desde a sua publicação, certo é que não são consideradas lei na acepção jurídica da palavra, de modo que as medidas provisórias, se veicularem novatio legis incriminadora ou in pejus (norma que prejudique o réu, criando crime ou aumentando pena, p. ex.) não podem produzir efeitos, nem mesmo se posteriormente forem convertidas em lei.
Por outro lado, se uma medida provisória versar sobre novatio legis in mellius (norma que beneficie o réu, revogando um crime ou diminuindo pena, p. ex.), se for convertida em lei, a partir de então o ato normativo será convalidado e poderá produzir seus efeitos.
Ainda, leis delegadas também não podem versar sobre matéria penal, pois a Constituição Federal “dispõe expressamente que não será objeto de delegação a matéria relativa a direitos individuais, entre os quais se incluem os atingidos pela esfera penal” (CAPEZ, 2020, p. 131).
TAXATIVIDADE E VEDAÇÃO AO EMPREGO DE ANALOGIA
A lei penal deve ser precisa e taxativa, de modo que um fato só será considerado criminoso se houver perfeita correspondência entre ele e a norma que o descreve. Assim, é proibida a analogia in malam partem (em desfavor do réu) em sede de Direito Penal. Por outro lado, é permitida a analogia in bonam partem (em benefício do réu) em sede de Direito Penal. Ainda, é permitida a analogia in bonam partem em sede de Direito Processual Penal e, segundo a doutrina majoritária, também é permitida até mesmo a analogia in malam partem em sede de Direito Processual Penal. Não confundir Direito Penal com Direito Processual Penal.
TAXATIVIDADE E DESCRIÇÃO GENÉRICA
O princípio da reserva legal “impõe também que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com tipos genéricos, demasiadamente abrangentes”, de modo que é vedada a generalização da norma penal que se faça “com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade” (CAPEZ, 2020, p. 133).
É que, como bem acentua Fernando Capez, “de nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos, tais como: ‘qualquer conduta contrária aos interesses nacionais’, ‘qualquer vilipêndio à honra alheia’ etc.”, porque “a garantia, nesses casos, seria meramente formal, pois como tudo pode ser enquadrado na definição legal, a insegurança jurídica e social seria tão grande como se lei nenhuma existisse” (CAPEZ, 2020, p. 133). É que “as fórmulas excessivamente genéricas criam insegurança no meio social, deixando ao juiz larga e perigosa margem de discricionariedade” (CAPEZ, 2020, p. 134).
EXCEÇÕES – CRIMES CULPOSOS: os crimes culposos são uma exceção à necessidade de taxatividade, pois, sendo condutas que não são previamente desejadas ou cujo risco não é assumido pelo agente (dolo direto e indireto, respectivamente), certo é que, “por mais atento observador que possa ser o legislador, não terá condições de pormenorizar todas as condutas humanas ensejadoras da composição típica”, isto é, ensejadoras dos crimes, de modo que “qualquer tentativa de detalhamento de uma conduta culposa seria insuficiente para abarcar o imenso espectro de ações do ser humano”, daí porque a razão, nos crimes culposos, de as “previsões típicas serem todas genéricas, limitando-se o legislador a dizer: ‘se o crime é culposo, pena de tanto a tanto’”, os quais são os “denominados tipos abertos, admitidos por absoluta necessidade fática”, pois a lei não poderia antever todas as formas de se cometer um homicídio por imprudência, negligência ou imperícia, por exemplo (CAPEZ, 2020, p. 133).
ATENÇÃO: apesar da exceção para os crimes culposos, alguns deles, embora pudessem, não se socorrem de tal exceção e tentam estabelecer um tipo penal que não seja aberto, como por exemplo o crime de receptação culposa, previsto no art. 180, § 3º, do CP, em que “o legislador afastou a fórmula genérica ao prever a definição do que seria comportamento considerado descuidado” (CAPEZ, 2020, pp. 133/134).
CONTEÚDO MATERIAL DO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL
Apesar de o princípio da reserva legal enunciar que só há crime sem lei anterior que o defina, não é por isso que podemos concluir que basta lei anterior que defina uma conduta como criminosa que, por si só, crime haverá. É dizer: embora a lei anterior que defina o crime seja necessária, o que consiste no aspecto formal do crime, temos que a investigação do operador do Direito não termina aí, pois, modernamente, falamos também num aspecto material do delito. Assim, só será criminosa a conduta que esteja previamente descrita em lei como tal (tipicidade formal) e que necessariamente também ofenda o bem jurídico de maneira relevante (tipicidade material). Temos aqui o início da compreensão da tipicidade material, que estudaremos melhor à frente.
PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI PENAL
Para haver crime, é necessário que a lei que o preveja já esteja em vigor na data em que o fato é praticado. Esse é o princípio da anterioridade da lei penal, do qual decorre o efeito da irretroatividade da lei penal, efeito esse que abrange não só as penas dos crimes, como também qualquer norma de natureza penal, ainda que da Parte Geral do Código Penal.
No ponto, vale a lição de Fernando Capez:
Como regra, podemos estabelecer o seguinte: toda e qualquer norma que venha a criar, extinguir, aumentar ou reduzir a satisfação do direito de punir do Estado deve ser considerada de natureza penal. Do mesmo modo, as normas de execução penal que tornem mais gravoso o cumprimento da pena, impeçam ou acrescentem requisitos para a progressão de regime não podem retroagir para prejudicar o condenado, porque aumentam a satisfação do jus punitionis. A irretroatividade não atinge somente penas, como também medidas de segurança (CAPEZ, 2020, p. 136).
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: 24ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020 – versão digital.
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