Da contradição categórico-semântica realizada pelo Superior Tribunal de Justiça na análise das nulidades absolutas e relativas no Processo Penal

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RESUMO

O presente artigo tem por escopo a análise da teoria das nulidades, conceituando e diferenciando as meras irregularidades, as nulidades relativas, as nulidades absolutas e os atos inexistentes no âmbito do Processo Penal brasileiro, com enfoque nas nulidades e nos seus atributos e requisitos para o seu reconhecimento de acordo com a doutrina processual penal em confronto com os recentes posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça, notadamente para apurar se até mesmo as nulidades absolutas dependeriam de prova do prejuízo para serem reconhecidas e se essas também estariam sujeitas ao fenômeno da preclusão.

Palavras-chave: nulidades; processo penal; prejuízo; preclusão.

INTRODUÇÃO

O Direito Processual Penal é o ramo do Direito que tem por objeto o estudo das regras para a efetivação do Direito Penal. A título ilustrativo, se alguém comete um crime, nasce para o Estado o poder-dever de punir, o que chamamos de jus puniendi, mas esse poder-dever só pode ser exercido nos moldes dos procedimentos previstos na legislação processual penal, respeitando o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, que são princípios de natureza constitucional.

Assim sendo, enquanto o Direito Penal cuida da matéria em si, isto é, da substância, do crime, da infração penal, o Direito Processual Penal, por outro lado, trata do caminho a ser percorrido para a efetivação do Direito Penal material, ou seja, para que se aplique uma pena a alguém que tenha cometido uma infração penal.

Os atos praticados em procedimentos e processos de natureza criminal devem obedecer os comandos legais, sob pena de serem considerados defeituosos. A consequência para isso pode ser a imposição de repetição dos atos defeituosos e, em alguns casos, até mesmo a repetição dos atos que se desdobraram daqueles ou que os sucederam.

O tópico de estudo relativo aos defeitos dos atos processuais recebe o nome de “teoria das nulidades”, tópico esse que é o objeto de estudo do presente artigo.

DESENVOLVIMENTO

Em se tratando da teoria das nulidades, a doutrina jurídica estabelece e diferencia os seguintes tipos de atos, em ordem de importância, do menos importante para o mais importante: meras irregularidades; nulidades relativas; nulidades absolutas; atos inexistentes.

Em relação às hipóteses de mera irregularidade, essas são situações em que, de tão brandas, sequer tratam de nulidades ou muito menos de atos inexistentes, mas tão somente de atos que não têm qualquer condão mínimo de causar prejuízo ou perturbação do rito procedimental:

Atos irregulares, por sua vez, são infrações superficiais, não chegando a contaminar a forma legal a ponto de merecerem renovação. São convalidados pelo simples prosseguimento do processo, embora devam ser evitados. Exemplo de irregularidade: o juramento do Conselho de Sentença, no Tribunal do Júri, é colhido informalmente, ou seja, sem que todos os presentes e o juiz presidente se levantem. Embora seja ato imposto pelo art. 472 deste Código, é natural que se trate de uma situação não comprometedora da regular constituição da Turma Julgadora, uma vez que se cuida de solenidade apenas para enaltecer a importância e o relevo da instituição do júri (NUCCI, 2014, p. 1172).

Complementando, eis a lição de Fernando Capez e Rodrigo Henrique Colnago:

Irregularidade: Desatende a exigências formais sem qualquer relevância. A formalidade violada está estabelecida em norma infraconstitucional e não visa resguardar o interesse de nenhuma das partes, traduzindo um fim em si mesma. Por essa razão, seu desatendimento é incapaz de gerar prejuízo, não acarreta a anulação do processo em hipótese alguma e não impede o ato de produzir seus efeitos e atingir a sua finalidade. Da norma contida no art. 564, IV, do CPP depreende-se que o ato irregular não é invalidado porque a formalidade desatendida não era essencial a ele (CAPEZ; COLNAGO, 2015, p. 525).

Já no que atina às nulidades em si, sabe-se que, conceitualmente, nulidade é o vício “que impregna determinado ato processual, praticado sem a observância da forma prevista em lei, podendo levar à sua inutilidade e consequente renovação” (NUCCI, 2014, p. 1171). A doutrina também classifica as nulidades em dois tipos, a saber, absolutas e relativas:

Dividem-se em: a) nulidades absolutas, aquelas que devem ser proclamadas pelo magistrado, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, porque produtoras de nítidas infrações ao interesse público na produção do devido processo legal. Ex.: não conceder o juiz ao réu ampla defesa, cerceando a atividade do seu advogado; b) nulidades relativas, aquelas que somente serão reconhecidas caso arguidas pela parte interessada, demonstrando o prejuízo sofrido pela inobservância da formalidade legal prevista para o ato realizado. Ex.: o defensor não foi intimado para comparecer à audiência de inquirição de uma última testemunha de defesa, cujos esclarecimentos referem-se apenas aos antecedentes do réu, tendo havido a nomeação de defensor ad hoc para acompanhar o ato (NUCCI, 2014, p. 1171).

Embora não haja na lei uma diferenciação taxativa e enumerada das hipóteses de nulidade, não havendo assim uma catalogação das que seriam absolutas e das que seriam relativas, mas tão somente um rol exemplificativo das nulidades em geral, certo é que a doutrina clássica propõe algum critério para tentar realizar a diferenciação, conforme lição de Borges da Rosa, citado por Guilherme de Souza Nucci:

(…) “se o espírito da lei foi atingido pela violação, esta é intolerável, ocorre nulidade, porque ocorre prejuízo, porque o fim colimado pela lei não foi conseguido. Mas, se ao invés, somente o texto da lei foi violado, porém não o seu espírito, visto como o fim colimado foi conseguido, então a violação é tolerável, não há motivo, de ordem superior, que exija a decretação da nulidade” (ROSA apud NUCCI, 2014, p. 1171).

Sobre as nulidades absolutas, a doutrina assevera que essas podem ser reconhecidas de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, que não precluem e que prescindem da demonstração de prejuízo, pois esse é presumido:

Nulidade absoluta: Nesse caso, a formalidade violada não está estabelecida simplesmente em lei, havendo ofensa direta ao texto constitucional, mais precisamente aos princípios constitucionais do devido processo legal (ampla defesa, contraditório, publicidade, motivação das decisões judiciais, juiz natural etc.). “O ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada” (Grinover, Scarance e Magalhães, As nulidades no processo penal, p. 21). As exigências são estabelecidas muito mais no interesse da ordem pública do que propriamente no das partes, e, por esta razão, o prejuízo é presumido e sempre ocorre. A nulidade absoluta também prescinde de alegação por parte dos litigantes e jamais preclui, podendo ser reconhecida ex officio pelo juiz, em qualquer fase do processo. A única exceção é a Súmula 160 do STF, que proíbe o Tribunal de reconhecer ex officio nulidades, absolutas ou relativas, em prejuízo do réu. Para ser reconhecida, a nulidade absoluta exige um pronunciamento judicial, sem o qual o ato produzirá seus efeitos (CAPEZ; COLNAGO, 2015, p. 525).

Já sobre as nulidades relativas, a doutrina assevera que essas só podem ser reconhecidas se suscitadas a tempo e modo oportunos, isto é, que precluem se não suscitadas no momento adequado, e que dependem da demonstração de prejuízo para serem reconhecidas:

Nulidade relativa: Viola exigência estabelecida pelo ordenamento legal (infraconstitucional), estabelecida no interesse predominante das partes. A formalidade é essencial ao ato, pois visa resguardar interesse de um dos integrantes da relação processual, não tendo um fim em si mesma. Por esta razão, seu desatendimento é capaz de gerar prejuízo, dependendo do caso concreto. O interesse, no entanto, é muito mais da parte do que de ordem pública, e, por isso, a invalidação do ato fica condicionada à demonstração do efetivo prejuízo e à arguição do vício no momento processual oportuno (CAPEZ; COLNAGO, 2015, p. 525).

Prosseguindo, a doutrina também estabelece os chamados atos inexistentes, que, de tão intensos ao violar os pressupostos da norma procedimental, na realidade nem mesmo se tratam de nulidades e sim de inexistência em si, não podendo ser convalidados:

À margem das nulidades, existem atos processuais que, por violarem tão grotescamente a lei, são considerados inexistentes. Nem mesmo de nulidade se trata, uma vez que estão distantes do mínimo aceitável para o preenchimento das formalidades legais. Não podem ser convalidados, nem necessitam de decisão judicial para invalidá-los: Ex.: audiência presidida por promotor de justiça ou por advogado. Como partes que são no processo, não possuindo poder jurisdicional, é ato considerado inexistente. Deve, logicamente, ser integralmente renovado (NUCCI, 2014, p. 1172).

No ponto, complementam Capez e Colnago:

Inexistência: Ato inexistente é aquele que não reúne elementos sequer para existir como ato jurídico. São os chamados não atos, como, por exemplo, a sentença sem dispositivo ou assinada por quem não é juiz. Ao contrário da nulidade (relativa ou absoluta), a inexistência não precisa ser declarada pelo juiz, bastando que se ignore o ato e tudo o que foi praticado em sequência, pois o que não existe é o “nada”, e o “nada” não pode provocar coisa alguma (CAPEZ; COLNAGO, 2015, p. 525).

Assim sendo, em relação aos atos defeituosos passíveis de ocorrerem no processo penal, podemos estabelecer a seguinte hierarquia entre eles, dos menos graves, que não têm consequência prática, até os mais graves, que demandam repetição: 1º) meras irregularidades; 2º) nulidades relativas; 3º) nulidades absolutas; 4º) atos inexistentes.

Considerando isso, foi possível estabelecer uma gradação de importância entre os atos acima mencionados, sendo que num extremo estão as meras irregularidades, no meio as nulidades e no outro extremo os atos inexistentes.

Retornando às nulidades, que são o escopo do presente artigo, o Código de Processo Penal, em seu art. 564, estabelece um rol exemplificativo das nulidades que podem ocorrer nos processos de natureza criminal, a saber:

Art. 564.  A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

I – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;

II – por ilegitimidade de parte;

III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

a) a denúncia ou a queixa e a representação e, nos processos de contravenções penais, a portaria ou o auto de prisão em flagrante;

b) o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art. 167;

c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos;

d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública;

e) a citação do réu para ver-se processar, o seu interrogatório, quando presente, e os prazos concedidos à acusação e à defesa;

f) a sentença de pronúncia, o libelo e a entrega da respectiva cópia, com o rol de testemunhas, nos processos perante o Tribunal do Júri;

g) a intimação do réu para a sessão de julgamento, pelo Tribunal do Júri, quando a lei não permitir o julgamento à revelia;

h) a intimação das testemunhas arroladas no libelo e na contrariedade, nos termos estabelecidos pela lei;

i) a presença pelo menos de 15 jurados para a constituição do júri;

j) o sorteio dos jurados do conselho de sentença em número legal e sua incomunicabilidade;

k) os quesitos e as respectivas respostas;

l) a acusação e a defesa, na sessão de julgamento;

m) a sentença;

n) o recurso de oficio, nos casos em que a lei o tenha estabelecido;

o) a intimação, nas condições estabelecidas pela lei, para ciência de sentenças e despachos de que caiba recurso;

p) no Supremo Tribunal Federal e nos Tribunais de Apelação, o quorum legal para o julgamento;

IV – por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.

V – em decorrência de decisão carente de fundamentação.

Sobre as nulidades acima exemplificadas, incumbiu à doutrina tentar catalogar quais delas seriam absolutas e quais seriam relativas. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci afirma o seguinte:

Divisão entre nulidades absolutas e relativas: são consideradas relativas as seguintes: (a) falta de intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública (inciso III, d, deste artigo); (b) não concessão dos prazos legais à acusação e à defesa, para manifestação ou produção de algum ato (inciso III, e, 2.ª parte, deste artigo); (c) falta de intimação do réu para a sessão de julgamento, pelo Tribunal do Júri, quando a lei não permitir o julgamento à revelia (inciso III, g, deste artigo). Não mais se exige a presença do acusado na sessão de julgamento (art. 457, caput), embora seja indispensável a sua intimação; (d) ausência de intimação das testemunhas arroladas no libelo e na contrariedade, conforme estabelecido em lei (inciso III, h, deste artigo). Foram eliminadas as peças libelo e contrariedade ao libelo, razão pela qual as testemunhas passaram a ser arroladas por simples petição das partes interessadas (art. 422). Devem as testemunhas, quando requerido, ser intimadas de toda forma; (e) omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato (inciso IV, deste artigo). As demais são absolutas (NUCCI, 2014, p. 1177).

Ocorre que, apesar da tentativa de catalogação trazida acima, nota-se na jurisprudência brasileira uma certa flexibilização da classificação trazida, pois em alguns casos o Poder Judiciário converte algumas nulidades tidas como absolutas em relativas e, noutros casos, o inverso é feito, isto é, algumas nulidades até então tidas como relativas são convertidas em absolutas.

As demais são absolutas, embora a jurisprudência venha convertendo algumas delas em relativas (ex.: a ausência de curador ao réu menor de 21 anos, em determinados atos) (..). Aliás, o mesmo se faz em sentido inverso, ou seja, a jurisprudência chega a converter nulidade tipicamente relativa em absoluta. A realização de laudo para a avaliação da capacidade de entendimento do silvícola constitui formalidade essencial ao ato (art. 564, IV, CPP), logo, figura no rol do art. 572 do CPP (nulidade relativa) (NUCCI, 2014, p. 1177).

Independentemente da problemática na catalogação, certo é que, uma vez catalogadas, as nulidades absolutas têm atributos diversos das nulidades relativas. Com efeito, o Código de Processo Penal brasileiro estabelece, em seu art. 563, caput, que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. Nota-se, portanto, que o prejuízo é o fator determinante para se verificar a nulidade de um ato, adotando-se, portanto, o princípio do prejuízo (pas de nullité sans grief) para isso.

Como dito, a doutrina entende que, nos casos de nulidades absolutas, essas podem ser declaradas independentemente do obstáculo concernente ao prejuízo:

Princípio do prejuízo (pas de nullité sans grief): Esse princípio não se aplica à nulidade absoluta, na qual o prejuízo é presumido, sendo desnecessária a sua demonstração. Somente quanto às nulidades relativas aplica-se este princípio, dada a exigência de comprovação do efetivo prejuízo para o vício ser reconhecido (CAPEZ; COLNAGO, 2015, p. 525).

Ocorre que a jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que, no Brasil, ressalvadas as Justiças Especializadas (Militar, do Trabalho e Eleitoral), é a Corte responsável pela pacificação da interpretação da lei federal, como o é o Código de Processo Penal –, vem afirmando que até mesmo as nulidades absolutas dependem de demonstração de prejuízo para que sejam declaradas e que também tais nulidades, se não suscitadas oportunamente, podem precluir, conforme ementa abaixo, que, segundo ela própria, reflete o entendimento reiterado do STJ ultimamente:

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ALEGADA NULIDADE DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. NÃO OCORRÊNCIA. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. MATÉRIA PRECLUSA. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A questão controvertida cinge-se à eventual nulidade do auto de prisão em flagrante, o qual não teria sido assinado pela autoridade policial. 2. O vício apontado no auto não é, por si só, suficiente para contaminar o processo, sobretudo pelo fato de que o inquérito é peça meramente informativa. 3. Ademais, “a jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que o reconhecimento de nulidade, relativa ou absoluta, exige a indicação em tempo oportuno e a demonstração do prejuízo, a teor do art. 563 do Código de Processo Penal.” (AgRg no AREsp 699.468/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/5/2017, DJe 24/5/2017). No mesmo sentido: HC 377.207/PR, de minha relatoria, QUINTA TURMA, julgado em 6/4/2017, DJe 17/4/2017. 4. Além de não ter sido demonstrado qualquer prejuízo ao acusado, as instâncias ordinárias concluíram que, embora ciente da situação, o recorrente optou em não apresentar a questão ao juízo, operando-se a preclusão. Precedentes. 5. Agravo regimental não provido (STJ, AgRg no AREsp 1857620/PR, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 24/08/2021, DJe de 30/08/2021) – grifou-se.

Nota-se, portanto, que a jurisprudência brasileira, ainda que diga manter alguma distinção teórica entre as nulidades absolutas e relativas, vem confundindo os dois institutos e também os seus efeitos, pois, como visto, ambas as modalidades agora dependem da prova do prejuízo e estão sujeitas à preclusão, o que se afigura equivocado, com a devida vênia.

Com efeito, é importante perceber que o que a Corte Superior vem fazendo em inúmeros julgados é, na realidade, extinguir a essência da distinção doutrinária entre as nulidades absolutas e relativas. É que, ao aplicar às nulidades absolutas os mesmos requisitos que já eram aplicados às nulidades relativas, o Poder Judiciário pátrio desnaturou qualquer efeito prático da distinção entre elas.

Nesse contexto, se admitirmos que a necessidade de ser provar o prejuízo e a preclusão são atributos inerentes tanto às nulidades relativas como também, agora, às absolutas, certo é que não faz mais qualquer sentido em diferenciá-las no campo teórico.

Como visto, as nulidades absolutas são marcadas por uma ofensa maior ao procedimento processual penal e até mesmo a direitos e garantias de natureza constitucional, como no caso da citação válida do réu, que é pressuposto básico para um processo penal que se pretenda minimamente não inquisidor.

Entender pela exigência da prova do prejuízo, até mesmo para a nulidade absoluta, possibilita um cenário absurdo em que o Poder Judiciário, mesmo diante da clara ausência de citação válida do réu, entenda por manter a sentença condenatória sob o argumento, por exemplo, de que “ele seria condenado independentemente da prova que produzisse em sua defesa, pois a investigação foi robusta e a acusação foi assertiva”.

De igual modo, o entendimento acima também possibilitaria outro cenário absurdo, a saber, o de que até mesmo a suspeição do juiz, embora consista em nulidade absoluta, só seria declarada se o réu “provasse o prejuízo”, admitindo-se argumentos como “o réu seria condenado até mesmo por um juiz não suspeito e por isso a sentença do juiz deve ser mantida, ainda que suspeito o magistrado”.

Fica nítido, portanto, redobrada vênia, que o STJ, ao condicionar até ao reconhecimento das nulidades absolutas os mesmos pressupostos das nulidades relativas, na realidade mesclou as duas formas de nulidades em uma só, sem, contudo, reconhecer o que fizera, agindo, de qualquer modo, em claro equívoco.

É que a razão de categorizar os objetos de estudo, nas Ciências, não é sem motivo. Isso porque o objeto categorizado, necessariamente, guarda estrita relação com a sua categoria em si.

Há milênios o renomado pensador Aristóteles já percebia e constatava isso em sua obra intitulada “Categorias”. Àquela época, o filósofo já consignava o seguinte:

10. Quando se diz de um objeto que ele é compreendido em alguma categoria, tudo o que se diz da categoria, se há de também dizer do objeto. Exemplo: na categoria de Homem compreende-se um determinado homem. E na de Animal, compreende-se o Homem. Logo um determinado homem compreende-se na categoria de Animal, porque esse determinado homem é Homem e Animal (…). 13. Assim que quantas forem as diferenças da categoria, tantas serão as do objeto (ARISTÓTELES, 2019, local 133).

Percebe-se, portanto, que, até mesmo para a mais elementar filosofia, o objeto categorizado tem – ou deve ter –, necessariamente, todas as características da categoria. Transportando isso para a Ciência do Direito, tem-se que se a jurisprudência ainda mantém alguma diferença categórica entre as nulidades absolutas e relativas, certo é que deveria manter também ao menos alguma diferença nos atributos de cada uma dessas categorias.

É dizer: se a própria ementa citada do julgado do STJ, assim como outras tantas ementas, mantém a distinção terminológica ao tratar de nulidades absolutas e relativas, tal distinção terminológica, para muito além de uma mera coincidência ou capricho, na realidade denuncia a própria distinção semântica havida entre uma e outra modalidades de nulidades.

E, como visto, essa distinção semântica, categórica, deve, necessariamente, repercutir em uma distinção de tratamento de tais tipos de nulidades, o que, no caso do Direito – que é uma Ciência Social Aplicada –, para muito além do mero preciosismo técnico, desagua em distinções nas consequências para os objetos de cada uma dessas categorias em si.

De tal modo, tem-se como no mínimo contraditória, cientificamente ou pragmaticamente, a postura da Corte Superior do Brasil, que, a um momento, identifica e diferencia as nulidades relativas das absolutas, mas, noutro momento, entende que tanto aquelas como essas dependem da prova do prejuízo e estão sujeitas à preclusão, igualando os seus atributos, portanto.

Assim, para sanar a contradição mencionada, só há duas soluções logicamente possíveis. A primeira delas é extirpar qualquer diferença categórica entre as nulidades absolutas e relativas, tratando-as todas num mesmo campo “das nulidades”, genericamente. A segunda é rever o posicionamento do STJ, resgatando as lições doutrinárias anteriores, no sentido de que há mesmo diferenças semânticas e práticas entre as nulidades relativas e absolutas.

A segunda solução é a mais acertada, defende-se. É que a lei processual penal, embora estabeleça que nenhum ato será declarado nulo se disso não resultar prejuízo, não afastou a possibilidade de se operar uma presunção até mesmo absoluta de prejuízo em determinadas hipóteses de nulidade.

Ora, o Direito é uno e indivisível e, assim sendo, admitindo-se presunções  relativas e absolutas até mesmo contra o réu (vide a presunção de vulnerabilidade da vítima no estupro de vulnerável), a doutrina processual penal bem fizera, há muito tempo, ao propor uma tentativa de catalogação das nulidades graves, que seriam absolutas, e das nulidades menos graves, que seriam relativas, propondo também que, nesse último caso, dependem de prova em concreto do prejuízo, enquanto, no primeiro caso, a violação da norma já é tamanha que, por si só, faz presumir o prejuízo, dispensando-se a sua prova.

O que se propõe aqui, então, é tão somente um resgate da doutrina em detrimento do equívoco operado pela inovadora jurisprudência que, a despeito de continuar diferenciando as nulidades relativas e absolutas em sua categorização, paradoxalmente resolveu atribuir a todas elas as mesmas características (necessidade de se provar o prejuízo e preclusão se não arguidas oportunamente).

A solução exposta, embora já confirmada sob o prisma lógico-filosófico, também é complementada sob o prisma jurídico estrito. No ponto, Aury Lopes Júnior leciona sobre a chamada teoria do prejuízo, fazendo críticas a ela:

Muitos são os julgados em que se invoca o pomposo (mas inadequado ao processo penal) pas de nullité sans grief, desprezando-se que a violação da forma processual implica grave lesão ao princípio constitucional que ela tutela, constituindo um defeito processual insanável (ou uma nulidade absoluta, se preferirem). O que importa é que a nulidade deve ser reconhecida, e determinada a ineficácia do ato.

Além da imprecisão em torno do que seja “prejuízo”, há um agravamento no trato da questão no momento em que se exige que a parte prejudicada (geralmente a defesa, por evidente) faça prova dele. Como se faz essa prova? Ou, ainda, o que se entende por prejuízo? Somente a partir disso é que passamos para a dimensão mais problemática: como demonstrá-lo?

Não é necessário maior esforço para compreender que uma nulidade somente será absoluta se o julgar (juiz ou tribunal) quiser… e esse tipo de incerteza é absolutamente incompatível com o processo penal contemporâneo (…).

Pensamos que a premissa inicial é: no processo penal, forma é garantia. Se há um modelo ou uma forma prevista em lei, e que foi desrespeitado, o lógico é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador criou uma formalidade por puro amor à forma, despida de maior sentido. Nenhuma dúvida temos de que nas nulidades absolutas o prejuízo é evidente, sendo desnecessária qualquer demonstração de sua existência (LOPES JR., 2020, pp. 1476/1477) – grifou-se.

Aury Lopes Júnior, enfrentando mais profundamente o problema, também tece críticas à distinção entre nulidades absolutas e relativas, entendendo que todas elas poderiam ser conhecidas independentemente da prova de prejuízo, pois o prejuízo se presume (LOPES JR., 2020).

Sem a pretensão de adentrar na problemática acima aprofundada por Aury, certo é que, tal qual defendido aqui, entende-se que no mínimo as nulidades absolutas dispensam prova do prejuízo, sendo esse presumido, pois, repita-se, entender de maneira contrária seria o mesmo que, de maneira inadmissível, acabar com qualquer lógica na categorização das nulidades, pois, se todas têm os mesmos atributos, não haveria motivo para categorizá-las de maneira distinta.

CONCLUSÃO

Diante dos apontamentos realizados, conclui-se haver razão na doutrina processual penal clássica que dispensa a prova do prejuízo como condição para o reconhecimento de nulidades absolutas, em homenagem à máxima de que “no processo penal forma é garantia”, afastando também o fenômeno da preclusão em relação a essa categoria de nulidades, podendo portanto serem arguidas e reconhecidas de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição.

Conclui-se também haver equívoco na interpretação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as duas modalidades de nulidades (absolutas e relativas) teriam idênticos atributos (necessidade de prova do prejuízo e sujeição à preclusão), pois, na realidade, ao manter a diferenciação categórica entre tais nulidades, tal diferenciação avança muito além do campo da mera nomenclatura e atinge a própria semântica de cada uma dessas modalidades de nulidades, permitindo-se o conhecimento das nulidades absolutas até mesmo sem prova do prejuízo, pois, no caso, o prejuízo é presumido pela própria violação da norma procedimental.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Categorias – Editora Mimética, 2019, e-book.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União de 13/10/1941, pág. 19.699.

BRASIL. STJ. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.857.620/PR, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 24/08/2021, Diário da Justiça Eletrônico de 30/08/2021.

CAPEZ, Fernando; COLNAGO, Rodrigo Henrique. Código de processo penal comentado – São Paulo: Saraiva, 2015.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal – 17ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado – 13ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014.


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