EMENTA:
RECURSO ESPECIAL. EXCESSO DE EXAÇÃO (ART. 316, § 1º, DO CÓDIGO PENAL). PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. VIOLAÇÃO AO ART. 619 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NÃO OCORRÊNCIA. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. ELEMENTOS PROBATÓRIOS CONSTANTES DO ACÓRDÃO RECORRIDO. LEGISLAÇÃO ESTADUAL DE REGÊNCIA DE CUSTAS E EMOLUMENTOS QUE COMPROVADAMENTE PROVOCAVA DIFICULDADE EXEGÉTICA EM SUA APLICAÇÃO. CONDUTA DO RÉU RESULTANTE DE EQUÍVOCO NA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DE NORMA TRIBUTÁRIA. DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS QUE ATESTAM A HIGIDEZ DA ATUAÇÃO DO RÉU COMO TITULAR DE CARTÓRIO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO PROVIDO. 1. Não ocorre violação ao art. 619 do Código de Processo Penal, no caso, porquanto exaurido integralmente pelo Tribunal a quo o exame das alegações defensivas acerca da tipicidade da conduta praticada pelo réu, fundamentando adequadamente os motivos pelos quais entendeu que a condenação pelo crime de excesso de exação seria de rigor, sendo dispensáveis quaisquer outros pronunciamentos supletivos. Precedentes. 2. A despeito da vedação ao reexame de provas em recurso especial, em atenção ao que prescreve a Súmula n. 7 desta Corte, admite-se a revaloração dos elementos fático-probatórios delineados no acórdão. 3. No caso, concluíram as instâncias ordinárias que o recorrente, registrador titular do Ofício de Registro de Imóveis de Itapema/SC, teria cometido o crime de excesso de exação, durante os meses de maio a junho do ano de 2012, por ter cobrado, em cinco registros de imóveis, emolumentos que sabia indevidos – num total de R$ 3.969,00 (três mil, novecentos e sessenta e nove reais) -, ao aplicar procedimento diverso do estabelecido na Lei Complementar Estadual n. 219/2001/SC, quando em um dos lados negociais existiam duas ou mais pessoas. 4. O tipo penal ora em estudo, art. 316, § 1º, do Código Penal, pune o excesso na cobrança pontual de tributos (exação), seja por não ser devido o tributo, ou por valor acima do correto, ou, ainda, por meio vexatório ou gravoso, ou sem autorização legal. Ademais, o elemento subjetivo do crime é o dolo, consistente na vontade do agente de exigir tributo ou contribuição que sabe ou deveria saber indevido, ou, ainda, de empregar meio vexatório ou gravoso na cobrança de tributo ou contribuição devidos. 5. E, consoante a melhor doutrina, “se a dúvida é escusável diante da complexidade de determinada lei tributária, não se configura o delito” (PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral e Parte Especial. Luiz Regis Prado, Érika Mendes de Carvalho, Gisele Mendes de Carvalho. 14. ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pp. 1.342/1.343, grifei). 6. Outrossim, ressalta-se que “tampouco existe crime quando o agente encontra-se em erro, equivocando-se na interpretação e aplicação das normas tributárias que instituem e regulam a obrigação de pagar” (BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 730, grifei). 7. Ainda, importante destacar que, “utilizando uma técnica legislativa reservada a poucos crimes, o art. 316, § 1º, exige, além dos normais requisitos do dolo com relação aos elementos de fato, ‘o saber’ que a exação é indevida. Logo, o agente deverá ter ciência plena de que se trata de imposto, taxa ou emolumento não devido” (CUNHA. Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial. 12. ed. rev, atual. e ampl. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, pp. 872/873, grifei). 8. Nesse palmilhar, a relevância típica da conduta prevista no art. 316, § 1º, do Código Penal depende da constatação de que o agente atuou com consciência e vontade de exigir tributo acerca do qual tinha ou deveria ter ciência de ser indevido. Deve o titular da ação penal pública, portanto, demonstrar que o sujeito ativo moveu-se para exigir o pagamento do tributo que sabia ou deveria saber indevido. Na dúvida, o dolo não pode ser presumido, pois isso significaria atribuir responsabilidade penal objetiva ao registrador que interprete equivocadamente a legislação tributária. 9. Na espécie, os depoimentos testemunhais de assessores correicionais, de registradores de imóveis, de funcionários do cartório e de profissionais do mercado imobiliário usuários do Cartório de Registro de Imóveis de Itapema/SC, constantes do acórdão recorrido, evidenciam que o texto da legislação de regência de custas e emolumentos à época do fatos, qual seja, a Lei Estadual Complementar n. 219/2001, provocava dificuldade exegética, dando margem a interpretações diversas, tanto nos cartórios do Estado, quanto dentro da própria Corregedoria, composta por especialistas na aplicação da norma em referência. Desse modo, a tese defensiva de que “a obscuridade da lei não permitia precisar a exata forma de cobrança dos emolumentos cartorários no caso especificado pela denúncia” revela-se coerente com a prova dos autos. 10. Ademais, a maioria dos depoimentos testemunhais revela a atuação hígida do réu ante a titularidade do Cartório de Registro de Imóveis de Itapema/SC, a reforçar que não se prestaria a sofrer uma imputação criminal para angariar R$ 3.969,00 (três mil, novecentos e sessenta e nove reais), valor que teria sido cobrado a maior em 5 registros de imóveis. Com efeito, dos 9 testemunhos relatados no acórdão recorrido, apenas 2 são contrários à tese defensiva; 4 corroboram a premissa de obscuridade na norma relativa à cobrança dos emolumentos, a dar margem a interpretações diversas; e 6 assentam a justeza e correção do réu na condução dos serviços notariais, sendo um deles, inclusive, de um dos assessores da Corregedoria. Mister destacar, outrossim, que, a partir da aplicação do mesmo método interpretativo, o réu praticou cobranças tanto acima quanto abaixo do valor de tributo devido. 11. Desse modo, repisa-se, os elementos probatórios delineados pela Corte de origem evidenciam que, embora o réu possa ter cobrado de forma errônea os emolumentos, o fez por mero erro de interpretação da legislação tributária no tocante ao método de cálculo do tributo, e não como resultado de conduta criminosa. Temerária, portanto, a condenação do réu à pena de 4 anos de reclusão e à gravosa perda do cargo público. 12. Outrossim, oportuno relembrar que, no RHC n. 44.492/SC, interposto nesta Corte (relatora Ministra Laurita Vaz, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, Quinta turma, Dje 19/11/2014), a defesa pretendeu o trancamento desta ação ainda em sua fase inicial. A em. Ministra Laurita Vaz, relatora do feito, abraçou a tese defensiva assentando que “não basta a ocorrência de eventual cobrança indevida de emolumentos, no caso, em valores maiores do que os presumidamente devidos, para a configuração do crime de excesso de exação previsto no § 1.º do art. 316 do Código Penal, o que pode ocorrer, por exemplo, por mera interpretação equivocada da norma de regência ou pela ausência desta, a ensejar diferentes entendimentos ou mesmo sérias dúvidas de como deve ser cobrado tal ou qual serviço cartorial. É mister que haja o vínculo subjetivo (dolo) animando a conduta do agente.” E arrematou que “a iniciativa de acionar o aparato Estatal para persecução criminal de titular de cartório, para punir suposta má-cobrança de emolumentos, em um contexto em que se constatam fundadas dúvidas, e ainda sem a indicação clara do dolo do agente, se apresenta, concessa venia, absolutamente desproporcional e desarrazoada, infligindo inaceitável constrangimento ilegal ao acusado.” A em. relatora ficou vencida, decidindo a Turma, por maioria, pelo prosseguimento da ação penal em desfile, desfecho esse que desconsiderou que, em observância ao princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve manter-se subsidiário e fragmentário, e somente deve ser aplicado quando estritamente necessário ao combate a comportamentos indesejados. 13. Outrossim, na lição de Guilherme de Souza Nucci, o elemento subjetivo do crime “é o dolo, nas modalidades direta (‘que sabe’) e indireta (‘que deveria saber’). Não há elemento subjetivo específico, nem se pune a forma culposa.” (NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 21. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2021, p. 1.253, grifei). 14. Portanto, não havendo previsão para a punição do crime em tela na modalidade culposa e não demonstrado o dolo do agente de exigir tributo que sabia ou deveria saber indevido, é inviável a perfeita subsunção de sua conduta ao delito previsto no § 1º do art. 316 do Código Penal, sendo a absolvição de rigor. Precedentes. 15. Recurso especial provido para, nos termos do art. 386, III, do Código de Processo Penal, absolver GUILHERME TORQUATO do crime do § 1º do art. 316 do Código Penal, objeto de apuração na Ação Penal n. 0010371-76.2012.8.24.0125, por atipicidade da conduta. (REsp 1943262/SC, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 08/10/2021)
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